Um cidadão contra a eutanásia


O Parlamento vota amanhã a despenalização da eutanásia. É uma votação ferida na sua legitimidade. É mais uma machadada na já débil relação dos portugueses com os seus representantes.


Sou contra a eutanásia. O Estado não pode, em circunstância alguma, ter poder sobre a vida de um cidadão. Não cabe ao Estado, nem aos homens que o compõem, decidir sobre que vidas merecem ou não merecem ser vividas, sobre o que é ou não é a dignidade individual. Na hierarquia de valores, a liberdade vem depois da vida.

Esta crença, partilhada por muitas gerações, permitiu-nos erguer um Estado limitado, não despótico e não arbitrário. Um Estado que colocou a preservação da vida e a inviolabilidade da existência humana como valor basilar das nossas sociedades. Não é por acaso que a nossa Constituição declara, no seu artigo 24.o, que a “a vida humana é inviolável”, o que, nas palavras de Jorge Miranda, significa que “ninguém pode dispor da sua vida, nem alienar a sua liberdade ou o respeito por si mesmo.”

Como muitos outros temas de chão comum, também este consenso humanista na nossa sociedade está a ruir perante os olhos deslumbrados da vanguarda. É um retrocesso civilizacional. Há quem se maravilhe com a modernidade destas políticas. Devo dizer que não há nada de moderno na morte, por mais pomposo que seja o nome que se lhe dá. Moderno, sim, é encontrar novas formas de promover a vida. Moderno, sim, é o esforço da ciência e da comunidade médica para encontrar novas formas de suportar a vida e libertá-la da dor. Moderno, sim, é reforçar a rede de cuidados paliativos e continuados, que permite às famílias amar e cuidar de quem precisa de ser amado e cuidado.

O Parlamento vota amanhã a despenalização da eutanásia. É uma votação ferida na sua legitimidade. É mais uma machadada na já débil relação dos portugueses com os seus representantes. É o resultado de andarmos a reboque das modas da esquerda radical, cujo projeto político é única e exclusivamente desconstruir os laços existentes na nossa sociedade.

A eutanásia não é sobre o alívio na morte. É, antes disso, sobre a dignidade que é devida na vida.

E para que seja claro, a questão, aqui, não é entre votar amanhã a legalização da morte assistida ou fazer um referendo mais à frente. A questão, aqui, é que a votação de qualquer projeto de lei nesta matéria não está legitimada no quadro da atual legislatura. Os portugueses foram a votos em outubro. Nessa altura, apenas três partidos – BE, Livre e PAN – inscreveram nos seus programas eleitorais ideias sobre a despenalização da morte assistida. Em números, isto significa que apenas 13,93% da atual configuração parlamentar é eventualmente favorável à eutanásia. À boleia dos 13,93% pode agora aparecer uma maioria. Uma maioria que se escondeu do escrutínio dos portugueses. Uma maioria possível que não está legitimada, nesta fase, neste tempo, para decidir sobre este assunto. Uma maioria que é cega, surda e muda face aos alertas que nos chegam da Holanda e da Bélgica.

A compaixão do legislador para com aqueles que sofrem acabou numa banalização da morte. Recordemos que a eutanásia começou por ser uma opção para os doentes terminais ou em sofrimento atroz. Não tardou que o argumento da liberdade individual fosse esgrimido para justificar o alargamento das “exceções” a idosos com demência, a pessoas paralisadas, incapazes de comunicar ou até a crianças. O número de mortes a pedido ainda não parou de aumentar. Confirmaram-se os piores receios: a “rampa deslizante” é mais íngreme e mais deslizante do que alguém poderia supor, pela simples razão de que a eutanásia concebe a liberdade sem limites.

Conta-se na Holanda uma história. Verídica. É a história de uma mulher que, no testamento vital, expressou o desejo de morrer no “tempo certo”. Já nos seus setenta e picos, a idosa foi vítima de demência. O médico e a família julgaram que tinha chegado o momento certo. A mulher resistiu. Não queria morrer. Mas para aquela família, para aquele médico, a vida de um ser humano em perda de faculdades mentais valia menos do que no seu estado anterior de racionalidade plena. A injeção letal acabou por ser administrada, o caso acabou na justiça – um entre muitos que cada vez mais chegam à barra dos tribunais.

Sou contra a eutanásia, também, porque sou autarca. Porque estou próximo das pessoas. Ao contrário da elite pós-moderna – quantos dos senhores deputados que votam a eutanásia sabem o que é estar, todos os dias, junto das populações e dos seus problemas? –, eu e os meus colegas autarcas sabemos bem que as políticas da Assembleia da República podem ter efeitos não intencionais muito negativos.

Uma série de políticas públicas arrogantes são culpadas por uma triste e inaceitável desestruturação social e pela demissão coletiva de cuidar. Há pais que não cuidam dos filhos; há filhos que abandonam os pais; há condóminos que ignoram vizinhos.

Há indiferença que grassa na vertigem da necessidade de gratificação instantânea e na desresponsabilização como modo de vida.

Há, por fim, um Estado que dá o pior dos exemplos, tratando pessoas como números. Um Estado que desistiu de zelar pela segurança, pelo bem-estar e pela qualidade de vida dos seus cidadãos. Portugal tem um SNS débil e uma rede de cuidados paliativos que continua à espera de compromisso e ação política. E nós, o que fazemos? Em vez de procurarmos coletivamente reforçar a primeira linha de defesa dos cidadãos, despenalizamos a eutanásia.

Como democrata, como humanista e personalista, recuso que a morte seja a solução que a sociedade tem para dar aos seus elementos mais frágeis.

A vida humana não pode ser objetificada. Mas é exatamente isso que estamos a promover quando a vida ou a morte se fazem a pedido. Não é na eutanásia que está a dignidade na morte que alguns procuram.

A eutanásia pela Europa tem um registo de abusos das salvaguardas. Era esperado que isso viesse a acontecer. Porque o argumento para a eutanásia é o mesmo que legitima a implosão das salvaguardas: a liberdade.

As consequências da eutanásia são inerentemente negativas, sobretudo para aqueles que qualquer político tem o dever de cuidar em primeiro lugar: os mais frágeis da sociedade.

Como autarca, como cidadão, como humanista, estou e estarei sempre contra a morte a pedido.

 

Presidente da Câmara Municipal de Cascais

Escreve à quarta-feira