As depressões Elsa e Fabien já tinham deixado a sua marca no norte do país. Durante três dias, Portugal viu-se sujeito aos caprichos da natureza, com a lista de ocorrências a aumentar a cada segundo. No sábado, a tempestade amainava em Gondomar, rumo a Sul, quando quatro jovens decidiram sair à rua para realizar um passeio radical de jipe, por troços acidentados e alagados, ignorando todo os perigos transmitidos pela comunicação social nas horas anteriores .
Às 15h00 desse dia, as águas do rio Ferreira corriam com uma força fora do comum e as margens transbordavam sob o olhar atento (e algo assustado) de alguns populares da localidade do Ramalho, em S. Pedro da Cova. A aventura dos quatro jovens, todos na casa dos trinta anos, prosseguia sem preocupações de maior, quando o rio surgiu no percurso como obstáculo. Desviar, nem pensar, ter-se-á concluído no interior da viatura. O grupo lá seguiu a direito, mergulhando no leito de jipe, precisamente naquele local. “Tenho muita experiência”, terá dito mais tarde o condutor, segundo declarou um popular às televisões. O desfecho não é difícil de adivinhar e a aventura quase terminou em tragédia. O jipe não chegou ao outro lado, arrastado por um corrente de águas revoltas, ramos grossos e outros destroços. Os populares mais assisados chamaram imediatamente por socorro.
Dois dos ocupantes do veículo conseguiram chegar sozinhos à margem, mas os outros dois tiveram de ser resgatados e sofreram ferimentos ligeiros, sendo transportados por precaução para o Hospital de Santo António, no Porto. No local, estiveram presentes 21 homens auxiliados por 11 viaturas dos Bombeiros Voluntários de São Pedro da Cova, do Serviço Municipal de Proteção Civil de Gondomar, do INEM e da GNR e ainda duas VMER dos hospitais de Santo António e São João.
Entretanto, este incidente ganhou proporções desmedidas, na sequência da reação “irritada” a este episódio por parte do presidente da Câmara de Gondomar, Marco Martins, através de uma publicação no seu Facebook. O autarca descreveu a ação das vítimas como “uma irresponsabilidade” e garantiu que lhes vai exigir o pagamento da operação de socorro. “Obviamente que estes senhores receberão a conta”, escreveu na sua página.
Contactado pelo i, Marco Martins negou “o número de 10 mil euros assumido por alguns jornalistas”, remetendo o preço final a pagar para “a tabela de taxas da Câmara Municipal de Gondomar e dos Bombeiros de São Pedro da Cova”. Neste momento , “os valores não estão ainda apurados”, mas o autarca sempre vai adiantando que a fatura “rondará os vários milhares de euros”.
Marco Martins justifica esta decisão com a incúria dos quatro jovens e, sobretudo, com a intenção de dar uma lição para que tal não se volte a repetir: “Recordo que todos os alertas são para respeitar”.
O presidente da Câmara de Gondomar sublinha que os agentes envolvidos nesta operação merecem “os parabéns”, uma vez que “arriscaram a vida para fazer o resgate”.
Juristas consideram que cobrança é ilegal O i tentou perceber as reais possibilidades da Câmara de Gondomar concretizar a intenção de cobrar a operação de socorro às vítimas acidentadas e, para isso, contactou o constitucionalista Jorge Miranda e o advogado Paulo Veiga e Moura. Ambos os juristas, depois de exposta a situação, partilharam a mesma opinião: “A exigência do presidente da Câmara de Gondomar não faz qualquer sentido”.
Ao i, Jorge Miranda considera “não existir nada na Constituição que justifique esta posição”, uma vez que “a obrigação da Câmara Municipal era, de facto, salvar” os jovens do jipe. Apesar de a matéria ser, essencialmente, de direito civil, o constitucionalista segue a sua sensibilidade para concluir que “as pessoas resgatadas não terão nada a pagar” e que “não haverá forma dessa exigência ser concretizada na prática”.
conduta do presidente de gondomar é “perigosa” O advogado Paulo Veiga e Moura é ainda mais incisivo. Para o jurista, o caso é claro e a posição de Marco Martins é até “perigosa”, por abrir um precedente imprevisível.
Veiga e Moura utiliza um exemplo para melhor explanar a sua posição: “Se uma pessoa der entrada num hospital com um ataque cardíaco e depois se constatar que a mesma fumava ou bebia, será que o paciente passa a ser responsabilizado pelos seus atos irresponsáveis e negligentes? Será que por ter ignorado as informações e os perigos tem de pagar ao preço real a conta hospitalar?”.
Segundo o advogado, a intenção da Câmara de Gondomar obrigaria a que “cada resgate tivesse de ser avaliado, para se apurar a verdadeira culpabilidade de todo os envolvidos”.
Paulo Veiga e Moura defende que o presidente da Câmara de Gondomar “está a inverter a ordem das coisas”, pois considera que “as autoridades municipais tinham o poder de impedir que esta situação ocorresse, proibindo a circulação naquele local”. E prossegue: “Isso não aconteceu e, na verdade, os envolvidos neste no acidente não cometeram nenhum ato ilegal.”
Mesmo admitindo o ato irrefletido e perigoso das vítimas, Paulo Veiga e Moura afirma que “não há nada na lei que permita ao município fazer-se pagar pelos seus serviços de resgate quando alguém está realmente em perigo.“