Alimentos. Afinal  quanto desperdiçam  os restaurantes por dia?

Alimentos. Afinal quanto desperdiçam os restaurantes por dia?


O i esteve nas ruas de Lisboa para perceber o nível de desperdício alimentar dos restaurantes e de que forma tentam (ou não) combater isso. Em Portugal, um milhão de toneladas de alimentos são desperdiçados por ano.


O tema do desperdício alimentar tem sido uma constante na agenda pública nos últimos anos. Segundo o último relatório da Organização para a Alimentação e Agricultura (FAO) das Nações Unidas, no ano de 2016, cerca de 14% da comida produzida a nível mundial foi desperdiçada ainda antes de chegar aos pontos de venda ao consumidor. Isto representa cerca de 600 milhões de toneladas de comida deitada para o lixo sem sequer chegar ao prato.

O relatório refere ainda que anualmente são produzidas em todo o mundo mais de quatro mil milhões de toneladas de alimentos, sendo ao longo de toda a cadeia – incluindo o consumo e o período anterior à colheita – desperdiçado aproximadamente um terço, o equivalente a cerca de 1,3 mil milhões de toneladas de alimentos. Face à dimensão do problema, em 2015, as Nações Unidas estabeleceram como um objetivo fundamental a redução destes valores para metade até 2030.

Além dos supermercados, outro dos intermediários que mais alimentos consomem diariamente – e, por isso, mais passíveis de terem desperdício – são os restaurantes. Segundo dados da Associação da Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal (AHRESP), existiam 5928 empresas ligadas à restauração apenas no concelho de Lisboa, em 2017. Basta um pequeno passeio pelas ruas da capital para encontrar a cada esquina restaurantes dos mais variados estilos culinários. Fomos ouvir os gerentes destes negócios para perceber quais as suas estratégias para evitar e para lidar com o desperdício de comida.

O tamanho importa Num aspeto, os gerentes estão de acordo: o tamanho do estabelecimento influencia a quantidade de desperdício e a forma como se faz a gestão dos alimentos.

Se entrar num estabelecimento de pequenas dimensões para almoçar ou jantar, a probabilidade de estar a consumir produtos mais frescos é maior. A grande maioria dos restaurantes deste tipo abastecem-se diariamente – às vezes, até bidiariamente, consoante as necessidades –, ou seja, compra de acordo com as necessidades do momento.

“Os restaurantes que vão todos os dias às compras acabam por ter pouco desperdício”, explica um comerciante. “Se eu compro uma alface num dia, no dia seguinte compro outra. Nestas casas pequeninas não temos condições suficientes para armazenar seja o que for, por isso temos de servir sempre alimentos do dia”.

Os gerentes destas casas de menor dimensão explicam que diariamente desperdiçam muito pouco, sobretudo pelas suas dimensões (e falta de capacidade de armazenamento) e pelas questões económicas, uma vez que “comida no lixo é dinheiro no lixo”. Essa certeza leva-os a comprar apenas o essencial para o dia. “Se a carne que comprei nesse dia não chegar para a procura, simplesmente digo aos clientes para escolherem outra coisa do menu, não vou comprar a mais de propósito”, conta um outro comerciante.

No outro lado da moeda surgem as grandes cadeias e os restaurantes de grandes dimensões. Nalguns destes espaços, quando os seus produtos estão quase a perder a validade, a empresa abastecedora simplesmente vai recolhê-los e troca-os por outros com um prazo mais alargado. “Nem sei o que lhes fazem”, refere um gerente de restaurante localizado na Rua Augusta.

Também nas cadeias de fast-food esta sensibilidade para com o desperdício alimentar acaba por ser menor, fruto da natureza perecível dos seus produtos. O gerente de um restaurante da cadeia Burger King explica-nos que toda a comida desperdiçada pelos clientes tem sempre de ir para o lixo, ainda que se encontre intacta. O mesmo acontece com qualquer produto cujo prazo de validade esteja muito próximo de caducar. As regras de higiene e segurança no trabalho da empresa assim o exigem. Quando sobram alimentos à noite, são os colaboradores quem leva para casa. Este gerente explica ainda que não é possível a empresa associar-se a qualquer associação ou instituição que recolha restos alimentares “porque, se acontece alguma coisa a alguém depois de consumir um alimento nosso, que são produtos com curta duração de vida, é a marca que sofre”.

Se o tamanho importa, a sazonalidade também. Numa Rua Augusta habituada a ter turistas a andar para cima e para baixo diariamente, o movimento dos restaurantes está intrinsecamente ligado ao número de turistas que por lá passam.

O movimento e o desperdício são diretamente proporcionais. Quando o primeiro é maior, o segundo acompanha-o. A maioria dos restaurantes explica que, naturalmente, têm maior desperdício nos meses de verão do que no inverno. “No verão chego a encher todos os dias um caixote do lixo só com comida, enquanto nestes meses não se desperdiça sequer metade disso”, explica uma gerente.

Os truques para não desperdiçar Superdescontos, oferta aos trabalhadores, usar os restos como alimento para animais ou doar a quem mais precisa, e até a “reciclagem” de pratos (por exemplo, usar numa feijoada os enchidos que sobram de um cozido à portuguesa) são algumas das soluções de recurso usadas pelos restaurantes, especialmente os de menores dimensões, na tentativa de reduzir o desperdício alimentar ao mínimo.

Tal como nas pastelarias, também nos restaurantes há quem faça os próprios bolos e quem os receba de fora todos os dias de manhã. Mas há uma prática que é comum a quase todos os estabelecimentos: mesmo que haja poucos excedentes ao final do dia, são os colaboradores do restaurante quem os leva para casa, para que não acabem no lixo. Há até quem faça superdescontos aos clientes a partir de certa hora e venda, por exemplo, dois bolos ao preço de um. Esta é uma prática comum, por exemplo, na zona do Beato.

Ainda nesta pequena freguesia da capital há muitos restaurantes que defendem que o que não serve para as pessoas pode servir para os animais. São vários os estabelecimentos que vão juntando os restos ao longo do dia para que passe lá um conhecido e os leve para dar a animais seus, nomeadamente a galinhas.

O provérbio “o lixo de uns é o tesouro de outros” é um lema que muitos seguem à letra. Na Rua Augusta existe mesmo uma espécie de pacto verbal entre alguns restaurantes e os sem-abrigo locais para que a comida, em vez de acabar desperdiçada, possa aproveitar a quem mais precisa. Alguns estabelecimentos deixam um saco à porta com os excedentes desse dia para que os sem-abrigo possam recolhê-los.

Para lá de todos este truques, a versatilidade da cozinha portuguesa auxilia estes pequenos negócios a desperdiçar o menos possível. “A nossa cozinha é tão versátil que dá sempre para fazer montes de coisas. Um cozido à portuguesa dá para fazer uma feijoada. Se sobra carne, dá para picar e fazer empadão ou bolonhesa. Cascas de batata dão para fritar e fazer um snack. Há sempre uma maneira de reciclar os alimentos”, explica um comerciante.

Nunca foi tão fácil não desperdiçar Por cá, estima-se que um milhão de toneladas de alimentos sejam desperdiçados anualmente. Para combater o problema têm surgido vários projetos e iniciativas que ajudam quem mais precisa.

A Refood – movimento que distribui por pessoas carenciadas alimentos e refeições que sejam excedentes de supermercados e restaurantes – é um exemplo disso. Atualmente, este movimento fundado por Hunter Halder em 2011 está já associado a cerca de dois mil restaurantes espalhados por todo o país – metade dos associados estão localizados em Lisboa.

O facto de os restaurantes “quererem sempre ter o produto disponível para o cliente leva a que comprem a mais e a que muita comida em perfeitas condições não seja vendida”, explica ao i o fundador da Refood. “Nós resgatamos a abundância de comida em boas condições e damos a quem mais precisa”.

Halder conta que recebe todos os dias comida em “perfeitas condições”. Ao nível dos supermercados, por exemplo, são produtos que estão quase a perder a validade ou que “têm um aspeto fora da sua estratégia comercial”. Quanto aos restaurantes, quase todos dizem ter pouco desperdício mas, “mesmo sendo pouco, isso pode fazer a diferença para uma família que tenha fome”.

Atualmente, a Refood conta com mais de 7500 voluntários e alimenta cerca de 6800 beneficiários diretos. Resgata cerca de 150 mil refeições por mês: no passado foram distribuídas mais de dois milhões de refeições, o equivalente a mil toneladas de material biodegradável.

Apesar destes números, o fundador da Refood considera que a população portuguesa está cada vez mais sensibilizada para a questão do desperdício alimentar. “As pessoas cada vez têm mais noção de que o desperdício alimentar é um problema para o ambiente e para quem precisa de comida, mas que é uma oportunidade de colaborar. Os nossos avós costumavam dizer que era pecado deitar comida fora e temos de ter isso em conta”, conclui.

Apps contra o desperdício Se abrir as lojas de aplicações no seu telemóvel – como é o caso da App Store e da Play Store – e pesquisar por “desperdício de comida” aparecerão várias aplicações que têm como objetivo reduzir o desperdício alimentar.

A Phenix – que engloba restaurantes, padarias, pastelarias ou mercearias – é um desses exemplos. Qualquer negócio pode aderir gratuitamente e o procedimento é simples. Ao final do dia, quando se aproxima a hora de encerramento, os comerciantes fazem contas ao que sobrou e formam cabazes com esses produtos.

Depois disso colocam o cabaz à venda na aplicação, com a peculiaridade de terem um desconto na ordem dos 30 a 50% sobre o habitual preço de venda ao público. Uma refeição com o custo normal de 10€ pode ficar a metade do preço. Após selecionar o cabaz pretendido, tudo o que o cliente tem de fazer é ver o horário de recolha na aplicação e ir levantar à loja, podendo fazer o pagamento através da app da Phenix.

Ao i, Eurico Estêvão, diretor de comunicação e eventos da Phenix Portugal, explica que este tipo de iniciativa permite “envolver o público em geral no combate ao desperdício alimentar e ainda poupar dinheiro pelo meio”.

A Phenix está já presente em cinco países – Portugal, Espanha, França, Bélgica e Suíça – e em Portugal tem já cerca de 70 estabelecimentos aderentes – 50 dos quais em Lisboa – desde que foi lançada em território nacional, em outubro deste ano. Segundo Eurico Estêvão, a aplicação tem já mais de oito mil utilizadores em solo nacional.

Desde a sua chegada a Portugal, a Phenix já salvou cerca de 900 mil refeições de serem desperdiçadas e desde que foi criada em França, em 2014, são já cerca de 60 milhões de refeições que “renasceram” – fazendo referência ao mitológico ser que renasce das próprias cinzas – nos cinco países onde atua.

O responsável da empresa em Portugal considera que soluções deste tipo “são muito importantes porque ajudam as pessoas a terem noção da quantidade que é e poderia ser desperdiçada, como também ajuda a chamar a atenção das pessoas para esta problemática”.

A aplicação permite ainda calcular quanto as pessoas já pouparam em relação ao preço normal dos produtos e informa quantos quilogramas de CO2 se evita lançar para a atmosfera de cada vez que se recorre a este serviço. “Ao comprar um cabaz evita que aquele CO2 tenha sido produzido em vão. Consciencializamos as pessoas através dos números”, conclui Eurico Estêvão.