A vez do mar


Fizemo-nos ao espaço em foguetões sem antes termos explorado o potencial dos nossos mares. E esse, para mim, é talvez o maior erro da humanidade.


Durante a sua história, a humanidade foi sempre vizinha do mundo oceânico. Durante esta história de milhares de anos, o interesse dos homens pelos mares foi chocantemente utilitarista. Procurámos os mares para comer, para encontrar novas vias de comunicação, para explorar recursos energéticos. Procurámos o mar para quase tudo, menos para o conhecimento. Faça uma sondagem: quantas crianças conhece que sonhem ser astronautas? E aquanautas?

Repare-se bem no seguinte: o homem já foi uma dezena de vezes à Lua e só por uma vez foi ao fundo do mar. Fizemo-nos ao espaço em foguetões sem antes termos explorado o potencial dos nossos mares. E esse, para mim, é talvez o maior erro da humanidade. Como é que podemos gastar tanto tempo e dinheiro a explorar um lugar a quem chamam Mar da Tranquilidade?

Ray Dalio, um homem da alta finança e autor do popular livro Principles, concorda comigo. Há uns meses, no 60 Minutos, ele dizia que ao contrário de outros bilionários americanos, não tem interesse rigorosamente nenhum na exploração espacial. Em vez de gastar biliões no espaço, Dalio propõe investir no conhecimento dos mares através da iniciativa Ocean X. Por duas razões: primeiro, o mar tem um ROI muito mais elevado – ou não fosse Dalio um gestor de hedge funds. Segundo: porque é muito mais interessante.

Eu acrescento: é mesmo muito mais interessante. Tem interesse cultural, educativo, científico, ambiental e económico.

E foi por isso que lançámos em Cascais, na presença do ministro do Mar, Ricardo Serrão Santos, o primeiro Conselho Municipal do Mar. O facto de ser o primeiro é, por si só, motivo de reflexão. Como é possível que só em 2019, numa nação com 500 anos de história atlântica, seja criado o primeiro fórum concelhio de reflexão sobre o mar?

Como diria Orwell numa das suas mais sábias frases, é preciso um esforço contínuo para ver o óbvio à frente dos nossos olhos.

Além disso, num plano mais substantivo, o Conselho Municipal do Mar segue uma filosofia muito popular entre nós. Essa filosofia parte da premissa de que juntos somos mais fortes do que separados. De que organizados em rede somos mais ágeis e adaptativos do que encaixados numa estrutura hierárquica vertical. De que a cooperação vale mais do que a competição. Há ditados populares que o tempo gastou. No mundo interligado, globalizado, cooperativo, é a partilha, e não o segredo, a alma do negócio.

Em Cascais, o Conselho do Mar é apenas o último de uma série de fóruns onde se incluem os conselhos municipais de Proteção Civil, de Educação, de Segurança, de Saúde ou dos Assuntos Sociais. Trata-se de encontrar novas formas de exercer e praticar a democracia, neste caso a democracia colaborativa, a qual, a par da democracia participativa, reforça e atualiza a democracia representativa.

Estes conselhos não são talk shops. São lugares onde os stakeholders criam rede própria de identificação de problemas e consensualização de soluções. São espaços de inovação porque cada um enriquece a sua atividade com a perspetiva de cada qual. E são, sobretudo, espaços que derrubam os muros mais antigos da sociedade portuguesa: os muros que separam os quintais administrativos, técnicos, académicos e profissionais – essas construções anacrónicas e geradoras de atrito na sociedade do conhecimento.

Neste recém-criado Conselho do Mar juntamos mais de 40 entidades para pensar e atuar no mar de Cascais. Associação de pescadores e clubes desportivos, hoteleiros e empresários, autoridade marítima e academias, ambientalistas e cientistas – o conselho reúne todos os stakeholders mais relevantes do mar de Cascais, Estado central, regional e local.

A ocasião serviu, uma vez mais, para sinalizar ao Governo duas ideias: a primeira liga-se à necessidade de delegar competências para as autarquias em matéria de gestão do espaço marítimo; a segunda, à vontade que Cascais tem de ser pioneiro neste debate – lembro que Cascais realizou há dez anos, com o prof. Hernâni Lopes e a sua SAER, um estudo local sobre a economia do mar – e com a disponibilidade para servir de território-laboratório.

Cascais é a única câmara do país com um programa municipal de arqueologia subaquática – que nos levou a descobrir uma nau da carreira das Índias afundada a 12 milhas do porto de Lisboa. Foi a primeira câmara do país a criar uma área marinha protegida. É a primeira autarquia a desenvolver ferramentas de mapeamento subaquático digital e a primeira a apostar no restauro e reflorestação subaquática.

Se há em nós, portugueses, vontade e engenho de voltar ao mar, então Cascais é certamente o navio-almirante do poder local no cumprimento dessa vocação atlantista.

 

Nota final: O mundo está órfão de causas. Precisa de referenciais. De apelos à ação. Só isso explica que tantos adultos se tenham apressado a prestar honras de Estado à menina Greta Thunberg. As pessoas precisam de razões para acreditar. Para alguns, Greta é um atalho para essa oportunidade de chegar a alguma coisa transcendente – ou de comprar instantaneamente uma boa consciência.

Mas será que precisamos que Greta nos diga o que temos de fazer no mar? Não o saberemos há décadas?

Greta tem os seus méritos, e eu não os disputo. Honestamente, não creio que seja preciso ir à Suécia para encontrar causas que nos movam. Elas estão à nossa volta. Conheço, no meu país e no meu concelho, jovens inspiradores, dedicados, apaixonados. Têm causas, têm exemplo e têm mangas arregaçadas. Só não têm honras de diretos nas TV nem espalhafato mediático na popa do seu veleiro.

 

Presidente da Câmara Municipal de Cascais

Escreve à quarta-feira