Manuel Amado. O homem  que pintava o silêncio

Manuel Amado. O homem que pintava o silêncio


Pintava “o tempo fora do tempo”, disse sobre a sua obra Eduardo Prado Coelho. O pintor morreu ontem, aos 81 anos.


O pintor Manuel Amado morreu ontem, aos 81 anos, vítima de cancro, avançou o Público. O velório realiza-se hoje a partir as 17h00, na Basílica da Estrela. Formado em arquitetura, que exerceu por mais de duas décadas, dedicou-se exclusivamente à pintura a partir dos anos 1980. “Aos 40 e poucos anos, comecei a achar que tinha condições para fazer um trabalho interessante, que valia a pena. Saía do emprego e às cinco e meia, seis horas, já estava a pintar”, contou numa entrevista concedida em 2007 à revista Tabu. O ‘ritual’ passou a ser diário e incluía os fins de semana. Finalmente, quando começou a fazer exposições, os mundos colidiram e optou pela arte. As suas obras fazem hoje parte do acervo de alguns dos mais importantes museus portugueses, entre os quais o Museu Calouste Gulbenkian, o CCB, a Culturgest, o Museu Coleção Berardo, o Museu da Cidade de Lisboa ou a Fundação Cupertino de Miranda.

Nascido a 13 de junho de 1938, num palacete dos avós paternos no Campo Grande – o espaço hoje convertido no Museu de Lisboa – Manuel António de Sotto-Mayor da Silva Amado foi o quarto dos sete filhos do escritor e “homem do teatro” Fernando Alberto da Silva Amado e de Margarida Abreu-Sotto Mayor. Estudou no Colégio Moderno, onde, segundo a biografia presente na sua página, se “interessou pelo teatro , literatura, desporto, desenho e pintura”. Tinha 14 anos quando a tia lhe ofereceu uma caixa de tintas a óleo e um cavalete – um momento que assinala como importante no traçar do seu percurso.

Ainda estudante, já de Arquitetura – iniciou o curso em 1957 – chegou também a colaborar como ator no Teatro Universitário de Lisboa. Desta altura, é da sua autoria o cenário da peça Óleo, de Eugene O’Neill. Muitos anos mais tarde, em 1977, participa ainda como ator no filme Nem Pássaro nem Peixe, da cineasta sueca naturalizada portuguesa Solveig Nordlund, e numa encenação de Antes de Começar (1985), um texto de Almada Negreiros.

Ainda antes de terminar o curso, casa-se com Maria Teresa Viegas e começa a trabalhar como arquiteto, mas é chamado a cumprir o serviço militar em 1960. Daí segue para Angola, como oficial miliciano, até 1963. É em Luanda que conhece Cruzeiro Seixas, de quem se tornará amigo e com quem fará, em 1971, uma “viagem de estudo” a Itália, Catalunha e sul de França. Para lá da amizade de Cruzeiro Seixas, Luanda trouxe-lhe ainda um importante contributo. Foi aqui que, “estimulado pelas saudades das suas realidades longínquas, que, ao pintar pequenos quadros, encontra as características específicas do seu modo de fazer pintura”. De volta a Lisboa, termina o curso de Arquitetura.

Em 1975 e 1976, participa em duas exposições coletivas na Sociedade Nacional de Belas Artes e em 1978, a convite de Cruzeiro Seixas, faz a sua primeira exposição individual, na Galeria da Junta de Turismo da Costa do Sol, no Estoril. Foi a primeira de uma série de mostras dentro e fora do país – Washington, Londres, Paris ou Madrid contam-se entre as cidades que receberem os seus quadros. Mas que quadros eram estes?

A força do silêncio Escada da Adega, Quarto Interior, Recanto com Escadote. Todas obras de Manuel Amado, todas de 1993, todas pertencentes à coleção da Gulbenkian (à qual acresce ainda A Casa de Banho, de 1982). Este conjunto de óleos presentes no museu é revelador das palavras com que Eduardo Prado Coelho sintetizou a sua obra. “Manuel Amado pinta, como é óbvio, não o espaço, mas o tempo, ou melhor: o tempo fora do tempo. Esta pintura não indica um caminho, não traz uma mensagem: ensina, pelo vazio dos mestres ou destinadores, a repousar de todas as mensagens”.

O amigo José Cardoso Pires escolheu o silêncio como força maior da sua pintura. “Em Manuel Amado o silêncio faz-se palavra pela celebração da luz. Vai mais longe: confere vida à cidade com a discretíssima insinuação de poesia e de segredo que paira nesse mundo deserto de personagens”, escreveu.

Era, efetivamente, assim. As suas obras, despojadas, convidam à acalmia. Partia sempre do desenho, que tinha uma importância primordial na sua obra – e talvez seja esta a herança mais direta que lhe ficou da arquitetura. “Nunca me entusiasmei muito com a arquitetura, embora tivesse sido arquiteto durante 25 anos”, contou na mesma entrevista à Tabu.

Para lá do método, apontava várias referências fundadoras do seu trabalho. “Em termos culturais, o cinema foi importantíssimo, como foram também a pintura antiga e o surrealismo. Aquilo que o surrealismo estava a mostrar interessou muito à minha geração”.

Desde 1996 que Manuel Amado ia todos os dias de Lisboa para Setúbal, para trabalhar num antigo palheiro de uma quinta de família que transformou no seu ateliê de pintura. Gostava das rotinas e considerava que ter horários era essencial. “A inspiração não existe. O que existe é trabalho. É preciso passar muito tempo no ateliê”.