Os portugueses votaram pouco e o PS, desta vez, ganhou as eleições legislativas, com uma vitória que é tudo menos grande. Não foi a ambicionada maioria absoluta. A diferença para a direita é inferior à vitória nas eleições para o Parlamento Europeu em 2014, que foi rotulada de “poucochinho”. Vamos aos factos que tanto arreliam alguns. O PS ganhou essas europeias de 2014 com uma vantagem de 3,75% sobre a direita. Com os votos das comunidades portuguesas por apurar, o PS ganhou as legislativas da semana passada com uma vantagem de 2,44% sobre a direita (PSD + CDS + Aliança + Iniciativa Liberal) e, se a estes ainda somássemos o Chega, a diferença seria de uns singelos 1,14%. A volatilidade em que alguns navegam não desmente nem estes factos, nem as circunstâncias únicas para a obtenção de uma maioria absoluta a partir do exercício do poder, perante uma direita destroçada e uma esquerda desnorteada com a experiência da proximidade com a responsabilização pela governação. Em 2015, quando era para ganhar, o PS perdeu; em 2019, quando era para ter maioria absoluta, não a conquistou.
Os portugueses votaram, renovaram a lógica da solução de Governo vigente entre 2015 e 2019, o PS anunciou que o modelo anterior não é repetível, nos parceiros e nos termos do compromisso. Os parceiros de solução de governo, em especial o Bloco de Esquerda, lamentaram a morte da dita solução de Governo. O PS negou a certidão de óbito, enunciou a existência de sinais vitais, agora sujeitos ao pinga-pinga da alimentação a soro.
A aparente sintonia entre a vontade dos portugueses e os propulsores da solução governativa de 2015 esvaneceu-se no espaço de uma semana, como se “a direita longe do poder” fosse o elemento aglutinador essencial.
Não se sabe onde ficam as proclamações de eternidade da anterior solução governativa, com papel passado, mas compreende-se a extasiante euforia nervosa de alguns, na noite das eleições, em defesa da sua continuidade. Afinal, a solução como foi configurada estava à beira de uma nova era, bem diferente da anterior.
Não se percebe como se calam os acérrimos defensores da anterior solução governativa perante uma configuração em que, sem papel passado à esquerda, vai governar quem ganhou com maioria simples, com a ambição de negociar cada passo governativo e legislativo preferencialmente à esquerda, com o PAN, sem excluir o PSD e o CDS, e colocando numa redoma de acantonamento o Chega. Aliás, numa deriva de promoção alegadamente negativa do novo partido parlamentar que é o inverso do que deveria ser feito – menos polémica e holofote significa menor afirmação. Afinal, ao invés do que proclamaram, mesmo quando o BE e o PCP faziam uma coisa em Lisboa e outra diversa no território, o modelo anterior de solução de Governo é finito e o atual PS afirmou não querer repeti-la. O mesmo PS que a entronizou tratou de a finar.
Do mal o menos, salvo se for para significar que:
– para viabilizar os instrumentos de governação, o PS aceite desvirtuar o seu programa eleitoral e a sua matriz identitária;
– para manter o poder, o PS aceite entrar por caminhos radicais, de rutura dos equilíbrios comunitários e de desrespeito pela esfera de liberdade de terceiros;
– para sustentar uma forma de fazer política, o PS aceite persistir em práticas e caminhos que não dignificam o exercício do poder político, não favorecem a transparência e não são geradores de confiança, abrindo caminho a fenómenos de alheamento, populismo ou intervenção radicalizada.
O atual quadro político, com o presente interlúdio, sublinha a inconsequência das irritações dos fundamentalistas da anterior solução com quem pensava e pensa de forma diferente, confirma a tentação do protagonista-mor para o descarte utilitário e gera um universo de dúvidas sobre a consistência da resposta para fazer o que ainda não foi feito e o que tem de ser feito, com a União Europeia e a NATO na equação.
Com as circunstâncias internacionais em mudança, para pior, e com estas alterações de contexto na realidade política nacional, a exigência do exercício político vai ser muito superior, mais intensa e com dificuldade de foco na razoabilidade e sustentabilidade das opções políticas. Sem compromisso prévio e com um quadro generalizado entre o esforço de recuperação do peso político (PSD, CDS, PCP e PEV), a relevância na governação (BE e PAN) e a afirmação de novos posicionamentos (Chega, Iniciativa Liberal e Livre), o leilão negocial antevê-se complexo, paciente e escrutinado. O contexto político mudou, o exercício político também terá de ser diferente. É tempo de renovadas mutações, ao alcance dos menos comprometidos com a coerência, a coluna vertebral e o genuíno exercício político focado nas pessoas. É tempo delas!
Notas finais:
Sem vergonha: Suportámos os desmandos do sistema bancário em nome da coesão do sistema, sustentámos as indecorosas comissões bancários em nome da recuperação das instituições e assistimos quase impávidos a perdões de milhões atrás de milhões, da Clínica Malo ao Sporting Clube de Portugal. Esta semana, a CGD anunciou renovadas comissões em alta. A toque de tesoura (saúde) ou de aumento de receita (CGD), quase todos éramos bons gestores. Aos grandes, perdoam milhões; aos pequenos, rapam tostões. Terão os contribuintes de criar um fundo?
Sem senso: Há prantos à esquerda e à direita, petições, abaixo-assinados, espasmos. Gente que a pretexto da liberdade de expressão não percebe que está a superar todas as ambições de notoriedade e de protagonismo dos novos fenómenos políticos. Continuem, que os seus objetivos políticos contam com o vosso contributo de promoção ou de contestação. No café, não era grave; nas redes sociais e nos média, a conversa é outra. Eles agradecem.
Sem sem: Em todas as comunidades, os interesses particulares e gerais têm expressões mais ou menos evidentes. É uma delícia assistir às dinâmicas, movimentações e posicionamentos de alegados defensores de interesses gerais a darem expressão à manutenção dos privilégios dos interesses particulares. E pensar que eles julgam que não são topados.
Escreve à segunda-feira