Desde que se conhece, o homem não consegue viver sem rituais e os mistérios, festas e sacrifícios que os envolvem. E, nos tempos modernos, as campanhas eleitorais são um dos mais apreciados, pela linguagem enigmática das proclamações, pela apoteose final dos vencedores e imolação dos vencidos.
No ritual de Elêusis, dos séculos vi a iv a.C., celebrava-se, no outono, a festa das colheitas. Perséfone, filha de Deméter, deusa da agricultura, fora raptada por Hades, rei do mundo subterrâneo e obrigada a casar com ele. Na busca da filha, Deméter descurou a sua missão na lavoura, pelo que não houve colheitas e grassou enorme fome. Após duras negociações, Perséfone foi libertada, mas obrigada a ficar a terça parte do ano com o marido, pela natureza do enlace com alguma violência doméstica. Deméter voltou a supervisionar os cultivos, exceto no período em que a filha ficava no mundo subterrâneo, quatro meses estéreis e de luto. Mas os festejos outonais das colheitas que os oito meses de labor de Perséfone ainda permitiam alcançar faziam esquecer momentaneamente todas as privações.
Também por cá, a safra é minguada, que o tempo das sementeiras se foi perdendo em divergências, em subtérreas negociações e no afagar de agravos entre os deuses conubiados contranatura para o exercício do poder terráqueo.
Mas, igualmente no outono, aí temos o ritual da celebração dos frutos da aliança, virtuais colheitas fartas que cada parceiro, instituído em deus salvador, exalta como obra sua e penhor garantido das promessas de abundâncias futuras.
O deus maior anunciou a ingovernabilidade (o que pressupõe que governava…) caso um dos consortes aumentasse o seu peso no enlace, esquecendo-se de que foi ele próprio a dar-lhe força quando lhe permitiu a autoria e anúncio das medidas mais populistas que tomou. E, dispensando agora intermediário, passou a exibir músculo, proclamando nova geração de políticas de natalidade e de habitação, designação ousada, que gerar habitação não será nada fácil, qualquer que seja a natureza da parturiente.
E logo o deus PAN, certamente para conforto dos recém-nascidos e guarda das habitações, anunciou a criação de um SNS para gatos e cães, a taxas moderadas para bichos mais desfavorecidos no cuidador que lhes coube em sorte.
E todos os deuses e deusas da natureza entraram em força no ritual, decretando o fim das barragens e do desperdício de água por evaporação, ou clamando pela eliminação dos sacos de plástico e, no futuro, quem sabe, pela execução de quem os utilizar. Não tardará, imporão o regresso às caixas de produtos a granel das antigas mercearias, vendidos a peso e transportados em cartuchos de papel feitos à medida. Mas como papel implica corte de árvores, matéria proibida, a solução será levar os géneros no bolso.
Montando banca na procissão, muitos se apressam a lucrar com a festa. Exultantes na folia, hospedarias de muitas estrelas, e sou testemunha, já vão deixando cartão no quarto dos viandantes, sugerindo-lhes dependurá-lo na porta se prescindirem da sua arrumação, economizando água, energia e detergente, para protecção da natureza. Vá lá, que ainda não pediram para não tomar banho.
E se os rituais antigos sempre exigiram banho prévio, oxalá o novo culto ainda permita que os nossos políticos se banhem até ao fim da campanha. Pelo menos, que o ritual se cumpra de esqueleto limpo, que as ideias andam tão turvas e tão consumidas em jogadas subterrâneas que nem a deusa Deméter, mesmo em full-time, poderá extrair delas qualquer colheita razoável. Mesmo que já dispensada de garantir férteis pastagens, por obra de vivaz curador de estudos gerais que, travestido de Atena, deusa da sabedoria, subiu ao Olimpo e vedou aos humanos a carne de vaca.
Pobre ritual, que tão maltrata a democracia. E pobre ambiente, se é assim que o querem salvar.
Empresário e gestor
Subscritor do “Manifesto: Por Uma Democracia de Qualidade”
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