Balbúrdia.  O nó infinito deste Brasil

Balbúrdia. O nó infinito deste Brasil


À Underdogs, em Lisboa, Marcelo Cidade trouxe, com outros quatro artistas feitos nos muros de São Paulo, o processo de “desorganização e reorganização” que o Brasil atravessa.


“Temer diz que não vai tolerar ser chamado de golpista”. O papel pode já ter amarelecido, e a verdade é que Temer parece já tema de outra vida, mas ainda agora completou três anos a edição em que foram publicadas estas gordas, que Thiago Neves fez questão não só de guardar, como de trazer de São Paulo para Lisboa para esta escultura a que chamou de Palanque. Na fotografia, Michel Temer toma posse, depois do afastamento de Dilma Rousseff. Sobre o palanque – um frágil caixote de madeira – três desses copos com que nas ruas se jogam jogos de azar. E não seria só Temer afinal, havia de se golpear a si próprio este Brasil que Marcelo Cidade, artista de São Paulo, traz à Underdogs, em Lisboa, numa exposição com quatro artistas – além de Thiago Neves, Coxas, Kaur e Sosek – a que deu o título de Balbúrdia.

Balbúrdia: “barulho ou ruído provocado por muitas vozes juntas”; “confusão ou desordem barulhenta = tumulto”. Para Marcelo Cidade, artista que tem construído o seu percurso equilibrando-se entre a cultura de rua e a arte contemporânea (aqui, curador e responsável pela reunião deste coletivo de artistas num grupo de trabalho que resultou nesta que é a primeira exposição internacional dos quatro), “a ideia dessa balbúrdia é sugerir mesmo essa ideia de desorganização e reorganização cultural” a que têm vindo a assistir a partir da cidade onde vivem e desenvolvem as suas práticas artísticas: São Paulo.

Uma exposição tão política quanto, no seu entender, é obrigado a ser qualquer artista contemporâneo na América Latina – e no Brasil. Dirá ele que desde sempre, mas arriscaremos acrescentar que mais agora ainda. Atrás do Palanque de Thiago Neves, daremos logo com uma das divisórias em chapa que ajudam a desenhar o percurso da exposição. Chapas iguais àquelas em que, aquando da votação do impeachment de Dilma Rousseff, foram utilizadas para erguer “um muro de contenção em Brasília, dividindo a cidade ao meio, com os manifestantes vermelhos de um lado e os verde-e-amarelo do outro”.

Mas não se julgue que não irá isto dar ao Brasil de agora. Como na História, o impeachment é só o início. E logo se dará com um Bolsonaro enjaulado comendo coxinha – uma das mesmas coxinhas que Coxas (André Barbato) se dedicou a pintar pelas paredes de toda a cidade de São Paulo. Da mesma forma que João Dória, mais adiante, seu apoiante e, com ele, eleito governador do estado de São Paulo. “Na cultura popular brasileira, a coxinha tem um double meaning: não é apenas um snack, coxinha é também o mauricinho, o betinho”, traduz. “Mas há também uma piada: os policiais adoram coxinhas, quando não têm dinheiro para comer donuts, comem coxinhas. Então há uma polaridade conceptual no que é essa coxinha.”

Para desenvolver estas duas obras (Talkey, dedicada a Bolsonaro, e Acelera, a João Dória), André Barbato fez uma pesquisa de fotografias dos candidatos a comerem em restaurantes populares, durante a campanha, que ampliou em impressões de grandes dimensões a preto e branco, sobre as quais pintou, de novo, as coxinhas que lhe deram o seu nome artístico. “A caixa [espécie de jaula que guarda a imagem] é aberta a interpretações, não quero fechar a obra.” No final de Balbúrdia, é uma instalação de pequenas esculturas em resina – Coxas – instalada ao centro da sala. Como que uma floresta de coxinhas.

“Dentro dessa balbúrdia, estou sugerindo quatro artistas, quatro jovens artistas que foram escritores de graffiti, que em São Paulo é super forte, durante um longo período, mas não estudaram arte. O que percebi nessa angústia diária deles foi uma transição, saindo da rua e começando a se aventurar por esculturas, pinturas, gravuras, querendo entrar na galeria, argumentar o trabalho numa posição mais crítica, mais profunda do que apenas o tagg ou o graffiti”, explica Marcelo Cidade sobre a escolha destes quatro artistas para trazer a Lisboa, depois de um convite da Underdogs. “Mais ou menos há um ano criámos esse grupo de estudo para pensar o que seria a exposição e, bem, as discussões acabaram sendo muito mais fortes em questões políticas do que em questões estéticas”.

Daí que Balbúrdia apareça quase como uma espécie de único resultado possível. Como a obra de Sosek que fecha a exposição. “Ele é nipo-brasileiro, uma das culturas nipónicas mais fortes fora do Japão é em São Paulo, e ele traz algumas características de gestos e relações do desenho japonês, nessa dualidade, uma ideia mais filosófica – o taoísmo, o budismo, relações espirituais de corpo e mente – num gesto caligráfico desses B-Bboys, a partir de fotografias de breakdance. A exposição acaba justamente nesse B-Boy girando eternamente na sua cabeça, numa condição ou Noutra”. O título? Nó Infinito.