Um crocodilo chamado Dandy ou um insuflável de crocodilo furado, não importa. Um copo de leite para a hora do leite, quatro e meia — da tarde, mas também da manhã, havendo uma bomba aberta ao fundo da rua. Mais um copo de vinagre, e venham eles dizer-nos qual das abstinências é a mais lixada. Entre leite e vinagre, que venha alguém que escolha, sobretudo se isto já se estiver a passar na Lua. Na Lua, não: num… resort lunar (reticências não são pontos de exclamação).
Do crocodilo chamado Dandy irá aquele tipo zero importado com o mal-estar de quem mal se apoia num insuflável furado, porque a verdade é que “sempre foi assim”, dar a Dostoiévski com O Crocodilo que publicou em 1865. O que já será demasiada informação para o assumido esforço de pseudo-intelectualização de um casal gay que, entre revistas VIP com três meses, insiste em fazer de uma lavandaria self-service um lugar agradável.
Como se isso fosse ainda possível aqui, na Terra, que por aqueles dois que Musk já levou para colonizar a Lua só não pode explodir pela simples razão de que lhes estragaria a vista. Do resort, claro. O resort de Elon Musk. Citando a Wikipedia, o “empreendedor, filantropo e visionário sul-africano-canadiano-americano fundador, CEO e CTO da SpaceX”, com que quer colonizar Marte. Por onde, daquele tempo em que os encontramos ali, deverá por certo andar já João Garcia, o alpinista.
A Terra, onde ficaram “os restos”, é como um globo pendurado por um fio de pesca a que uns certos privilegiados se dão ao luxo de fazer piretes, e onde é que já vimos isto. Por lá, a vida continua a fazer-se à base de copos de leite, insufláveis chamados Dandy, de idas à barragem, Ariana Grande sabe-se lá onde e selfies de pernas com o mar como fundo — e um José Rodrigues dos Santos cuidadosamente esquecido na toalha. De resto, sobrarão as rodelinhas de limão — para morder, não se vá dar o caso.
O caso de ela voltar a aparecer por aí. Ela, essa incomodidade tão difícil de definir como de se varrer daqui para fora. A incomodidade, o mal-estar, a má onda, a crise, no sentido mais universal e lato possível, da qual partiram Levi Martins, encenador, e Miguel Branco, autor do texto de Até Parece, uma produção da Companhia Mascarenhas-Martins que levam entre amanhã e 22 de setembro à Sociedade Filarmónica Incrível Almadense, em Almada.
A crise? Não acaba No início, chamaram-lhe “crise”. Qualquer crise que fosse a daquele grupo de pessoas a que Levi Martins propôs que se sentassem em conjunto à volta de uma mesa para a discutir. O que quer que ela fosse. Até porque a “crise”, propriamente dita, recorda Levi Martins, “já tinha terminado”. Ou então não. “Pois, essa é a questão. O que tenho visto desde já há muitos anos é que há sempre uma espécie de desadequação da vida quotidiana àquilo que são os nossos anseios. Desde a adolescência, ou até antes, que penso que há aqui qualquer coisa que não bate muito certo: o discurso idealista e sonhador com que somos educados, de princípios e de uma certa harmonia entre as pessoas, a ideia de meritocracia e, depois, o real. A pessoa começa a desiludir-se, a tirar camadas de ilusão ao real, e começa a ver as coisas como elas são. Fui chegando à conclusão de que se calhar esse mal estar já vem de muito lá atrás.”
O resultado, que poderia ter sido um qualquer, acabou por ser um espetáculo de teatro, que não se pode dizer que estejam a levar a um palco porque na Incrível Almadense, onde até há um, não o usam. Entre um início ao qual se regressa apenas na cena final — dois tipos ao sol, um numa cadeira, outro num crocodilo furado, provavelmente numa barragem — Até Parece constrói-se de uma sucessão de quadros em três cenários, que são o mesmo: um casal viciado em leite e vinagre em frente a um televisor onde melhor será assistir a crocodilos no Odisseia do que ao lixo televisivo que limpar será impossível; um casal em choque cultural com uma velha numa lavandaria self-service e dois maninhos que já estão na Lua, a colonizá-la.
E são o mesmo sem disfarces ou artifícios. Por exemplo, a peruca que a velha, que era o tipo sentado na cadeira do início, vai buscar à máquina de lavar já depois de ter começado a cena. “As pessoas dizem ‘ah, esqueceu-se da peruca’. É a ideia, a lógica de transição é precisamente essa”, exemplifica Miguel Branco. E completa Levi Martins: “O próprio texto finta-te, parece ir por um lado e depois vai por outro, sugere uma data de ligações que não são muito claras. Parecem mais ligações formais do que de sentido. O que tentámos foi montar o espetáculo assim também, para a pergunta ‘o que é isto?’”.