Kosovo. No Campo dos Melros, a pátria ainda não se discute!

Kosovo. No Campo dos Melros, a pátria ainda não se discute!


Preparando a visita da seleção kosovar a Southampton, onde ontem defrontou a Inglaterra, a imprensa britânica caiu em peso sobre uma das grandes surpresas desta fase eliminatória do Europeu de 2020. Em apenas nove anos, a evolução foi extraordinária. “The Brazil of the Balkans”, trataram de exagerar, destacando o seu público fanático.


O Kosovo brotou recentemente das estranhas da geografia num parto difícil que levou a exageros de sangue. O nome vem da escuridão dos tempos, de 1389, quando Lázaro, príncipe dos sérvios, combateu a invasão otomana no Campo dos Melros (kos, em servo-croata, significa melro, sendo kosovo o possessivo do nome). Quando, hoje, falamos do Kosovo, referimo-nos à parte albanesa da região, que se independentizou em 2008 a despeito do não reconhecimento de muitos países. Porque há também a parte sérvia, de nome Metohija.

Subitamente, as notícias sobre o Kosovo deixaram de soar apenas ao ritmo do metralhar das armas. Há lugar para o futebol entre Pristina e Mitrovica, de Dakovica a Pudojevo. Fala-se de uma seleção plena de juventude e de talento cujos jogadores estão espalhados um pouco por toda a Europa. Do avançado Vedat Muriqi, no Fenerbahçe; dos médios Bersant Celina (Swansea), Edon Zhegrova (Basileia); dos defesas Amir Rrahmani (Hellas Verona) e Mërgim Vojvoda (Standard Liège). Mas também dos veteranos Samir Ujkani, guarda-redes do Torino, ou Veron Berisha, centro-campista da Lazio, de Roma. Um grupo de gente que vem sendo reforçada por elementos da equipa de sub-21 e que o técnico suíço Bernard Challandes, de 68 anos, muito tempo responsável pelo desenvolvimento das seleções jovens helvéticas, transformou numa espécie de armada guerreira que leva atrás de si um profundo orgulho nacional.

Quem poderia afirmar que, no espaço de apenas nove anos – o primeiro jogo da seleção kosovar no pós-independência foi a 17 de fevereiro de 2010, um amigável frente à Albânia (2-3) –, o Kosovo seria capaz de se apresentar em Southampton ontem à noite, para enfrentar a Inglaterra, instalado no segundo lugar do grupo A de qualificação para a fase final do Europeu de 2020, com oito pontos em quatro jogos, acima da República Checa, que acabou de vencer por 2-1, em Pristina, no passado dia 7, dando a volta ao resultado e respondendo ao golo de Schick com pontapés certeiros de Muriqi e Vojvoda? E que, ainda por cima, não sabe o que é uma derrota desde 9 de outubro de 2017, quando foi derrotado no Laugardalsvöllur de Reiquiavique, pela Islândia (0-2), somando a belíssima cifra de 15 jogos consecutivos sem perder?

Claro que, com o jogo de ontem em perspetiva, a imprensa inglesa caiu em peso no Kosovo para tentar perceber que espécie de milagre por aí estava a desenvolver-se. E sabemos como os jornalistas do lado de lá da Mancha se pelam por uns bons exageros e por qualquer espécie de berro que possa colorir uma manchete ou um simples título. “The Brazil of the Balkans is coming!”, não demoraram a espalhar como se fossem sopradelas num trombone. “Uma equipa que joga com uma alegria esfusiante e uma técnica apurada e recebe o apoio fanatizado de um público que vê no futebol uma forma de afirmar a independência do seu país e a sua cada vez maior distância para os centenários dominadores sérvios”.

Samir Ujkani, o capitão, 30 anos já concluídos, é a imagem dessa fé que se espalha como fogo em palha seca no Campo dos Melros: “Quando entrei em campo frente à República Checa e vi a forma como os nossos adeptos nos receberam, plenos de confiança, vieram-me as lágrimas aos olhos”, confessou. “Sinto orgulho em ser, hoje, o único desta equipa que ainda vem do tempo do jogo frente ao Haiti (5 de março de 2014, o primeiro do Kosovo reconhecido pela FIFA), mas não sou mais do que qualquer um dos meus companheiros. Temos caminhado juntos sem nos conhecermos bem. Mas há, acima de tudo, a pátria!” No Kosovo, a pátria ainda não se discute. É apenas a hora de desfrutá-la.