Leipzig. O misterioso Stange, espião que se sentava no banco

Leipzig. O misterioso Stange, espião que se sentava no banco


Ofereceu-se à polícia secreta da RDA, a Stasi, como delator. Elaborava relatórios sobre todos os que trabalhavam com ele na selecção, incluindo jogadores. Em 1995, foi exposto publicamente. As suas canalhices valeram-lhe a alcunha de Lügenbaron, o barão da mentira. O delator de trânsfugas foi obrigado a fugir.


Acho que o tempo passou tão depressa que a gente até se esqueceu, entretanto, que Leipzig ficava na República Democrática Alemã, ou na Alemanha Oriental, como diziam alguns. A última vez que lá estive já era alemã total, em 2005, no sorteio da fase final do Campeonato do Mundo que teria lugar no ano seguinte e ficaria como a melhor participação portuguesa de sempre a seguir à aventura dos Magriços em Inglaterra, em 1966.

Leipzig voltou à agenda do futebol português por causa da Liga dos Campeões e do Red Bull Leipzig, adversário do Benfica, e este Red Bull dá logo ideia da modernidade de uma Alemanha de Leste que se ocidentalizou após a queda do maldito muro e faz, agora, parte de uma sociedade de comércio plenamente aberta e em funcionamento rápido. Com o patrocínio da marca de bebidas energéticas, foi criar raízes nas cinzas do antigo FC Sachsen Leipzig, que já era sucessor de um antigo campeão da RDA, o Chemie Leipzig.

Chemie, como se está mesmo a ver, remete para as antigas usinas químicas que a Alemanha de Leste tinha aos pontapés. Havia vários clubes chamados Chemie, um dos quais em Gnaschwitz, um pouco a sudeste da desgraçada Dresden que a II Grande Guerra transformou nos escombros mais belos-horrendos do mundo. Foi aí que começou a carreira de futebolista de Bernd Walter Stange, uma carreira bem medíocre, é preciso que se diga, prolongada por equipas desconhecidas como a do Vorwärts Bautzen ou a do HSD DHfK Leipzig.

Bernd passou a técnico em 1970, apenas com 22 anos. Não tinha jeito para dar pontapés numa bola mas era um moço estudioso que rapidamente tirou o curso de professor de educação física. A sua diligência conduziu-o às camadas jovens do Carl Zeiss Jena e, em seguida, às seleções do seu país, passando pelos sub-19 e pelos sub-21 até chegar aos olímpicos, em 1982, e à equipa principal em 1984.

1989, o ano da transição, foi encontrá-lo de novo em Jena, agora como treinador-mor do Carl Zeiss, o clube das lentes. Mas os tempos de mudança fizeram com que o seu passado fosse observado com maior atenção e pormenor. Stenger não tardou a cair em desgraça.

“Strange Stenger”. Uma reportagem levada a cabo pelo Bild teve eco no Mirror. Os ingleses não demoraram a avançar com o trocadilho: “Strange Stenger”.

Na Alemanha, os jornais foram mais violentos: “der Lügenbaron” – o Barão da Mentira.

O crime de Stenger era o da delação. E ser bufo não é motivo de orgulho nem para um canalha de pai e mãe. Sob o nome de código de Kurt Wegner, trabalhou para a polícia secreta do governo da Alemanha Democrática entre 1973 e 1986. Ministerium für Staatssicherheit, de nome oficial. Popularmente, Stasi.

Com a divulgação pública dos arquivos da Stasi, Stanger perdeu a sua imagem de homem cordato e afável e tornou-se, aos olhos da maioria dos que o observavam, num pulha inqualificável. Tinha sido por sua iniciativa que entrara para a polícia como espião. Fora ele mesmo que se oferecera para participar tudo o que ia sabendo sobre os que com ele trabalhavam, organizando fichas macabras com pormenores da vida privada, sem poupar sequer os jogadores que, todos os dias, suavam à sua frente no esforço laborioso dos treinos e dos jogos.

Em 1984, um telefonema de Bernd para o seu colega e amigo Jörg Berger, que fugira para a Alemanha Ocidental via Jugoslávia, foi gravado e ficou como testemunho indelével da sua calhordice. A gravação serviu para colocar Berger na lista de elementos perigosos da Stasi, provando que tinha em mente ajudar vários jogadores a seguirem o seu caminho e desertarem. Jörg nunca lhe perdoou: “Teve um comportamento indecente. Percebi que a única coisa que lhe interessava era promover-se politicamente de forma a garantir a sua carreira. E ganhar dinheiro com os seus relatórios, claro!”.

O canalha acabaria por ter o seu castigo. Exposto em 1995 como Inoffizieller Mitarbeiter (funcionário não-oficial) da Stasi, foi despedido do cargo de treinador do Lokomotiv Leipzig e considerado como persona non grata no futebol alemão. O homem que tinha como missão delatar os possíveis trânsfugas foi obrigado a fugir para trabalhar. Passou pela Ucrânia, pela Austrália, pelo Chipre, por Omã, foi selecionador do Iraque no tempo de Saddam Hussein, defendeu o filho deste, Uday Hussein, presidente da federação, das acusações de tortura a jogadores da equipa nacional por falta de empenho, e quando se apresentou em Londres, à frente da Biolorússia, para um jogo de qualificação face à Inglaterra, despachou os repórteres que o questionaram sobre o seu passado com a simplicidade de um patife profissional: “Não se deve misturar futebol com política!”.