Que a coerência, enquanto atitude de vida, não é simples na sua definição nem de fácil sustentação prática, todos o sabemos.
Dizer, nos dias de hoje, de alguém que é coerente constitui um elogio raro e de que poucos serão dignos.
Sim, sublinho “nos dias de hoje”, pois o relativismo de ideias e de atitudes confunde-se deveras com o mais descarado oportunismo e as mais vergonhosas falhas de caráter.
Importante é, em todo o caso, saber diferenciar a coerência do fundamentalismo, se assim se pode dizer, ou da simples teimosia.
Ser coerente não deve, assim, significar uma atitude cega que conduza a agir ante a realidade circundante como se o tempo que moldou a nossa consciência não tivesse mudado o mundo.
Claro está que há mudanças e mudanças, sendo umas fundamentais e outras apenas ocasionais.
Ser coerente significa, precisamente, saber adequar aqueles valores que sempre orientaram a nossa vida à realidade – por mais mutável que seja –, única forma de tornar tais valores úteis, e as nossas atitudes eficazes para os fazer valer.
Ser coerente representa, pois, estar disponível para, inclusive, constatar os erros de fundo em que laborámos e a necessidade de corrigir atitudes para, justamente, podermos continuar a afirmar os valores fundamentais que nortearam as nossas vidas.
Não denota isso claudicar nas ideias, antes ser coerente com a verdade que insistimos em afirmar e que justificou o nosso percurso de vida.
Ser coerente significa, portanto, saber lutar por tais valores, quaisquer que sejam as circunstâncias com que nos deparamos.
Ora, é precisamente aí que importa não cair em fundamentalismos abstratos ou em pura e cega teimosia pessoal.
As circunstâncias que nos confrontam podem ser de natureza diversa e implicar não só a vida própria – de que dispomos livremente – como a vida dos que nos são próximos e inclusive a da maioria dos outros, mais ou menos afastados, que nos rodeiam e constituem a sociedade em que vivemos.
Por isso, ser coerente implica não só alguma flexibilidade de espírito e de atitude, mas também um esforço constante de despojamento do orgulho e do amor próprios.
Significa, enfim, ter uma ampla e límpida disponibilidade para atender aos problemas mais imediatos dos outros e aos seus pontos de vista, por mais errados ou insuficientes que estes nos pareçam.
No fundo, ser coerente para com os valores fundamentais que nos guiaram pode implicar, por vezes até, a humildade de parecer incoerente.
Ou seja, a necessidade de dar uma explicação suplementar – e que, à partida, nos parece supérflua – para a atitude que, num dado caso, adotámos, por a considerarmos mais justa.
Significa, sempre e em todas as circunstâncias, dar testemunho.
Ser coerente à custa dos outros não é verdadeiramente ser coerente: é ser apenas arrogante, prepotente e egoísta.
As atitudes políticas, como as expressões públicas de natureza religiosa, deveriam ter sempre em mente este tipo de preocupações.
Por exemplo, a grande aceitação que merece, em todos os lados, o Papa Francisco resulta, precisamente, da sua maneira inteligente e generosa de ser coerente.
Que a coerência implique atitudes pessoais corajosas e mesmo dolorosas é uma evidência que só enaltece quem as assume.
Que ela não deva, em todo o caso, sacrificar em vão a vida dos outros que, de algum modo, connosco vivem, mais ou menos proximamente, é que ainda não parece ser uma prática corrente e socialmente exigível.
Escreve à terça-feira