Começo por citar um breve diálogo da peça de teatro Calígula, de Albert Camus, estreada no ano de 1945:
CALÍGULA: Justamente! Trata-se do que não é possível, ou melhor: trata-se de tornar possível o que não o é.
CIPIÃO: Mas esse é um jogo que não tem limites. É a diversão de um louco.
CALÍGULA: Não, Cipião, é a virtude de um Imperador. (Vira-se com uma expressão de fadiga). Acabo de compreender, enfim, a utilidade do poder. Ele dá oportunidades ao impossível. Hoje, e por todo o tempo que há-de vir, a minha liberdade não tem mais fronteiras.
Em 1945, dois Calígulas modernos, Hitler e Mussolini, inicialmente apoiados pelo povo alemão e pelo povo italiano – sinal inquietante –, foram finalmente derrotados pelos Aliados, ao cabo de mais de 50 milhões de mortos. O que nos remete para outro diálogo daquela peça de Camus:
PRIMEIRO PATRÍCIO: Falaste bem, Cherea. Também fizeste bem em acalmar-nos. É muito cedo para agir: o povo ainda seria contra nós. Queres esperar connosco a ocasião propícia?
CHEREA: Sim, deixemos continuar Calígula. Empurremo-lo, mesmo. Organizemos a sua loucura. Há-de vir um dia em que ficará só, diante de um Império cheio de mortos e de parentes de mortos.
Ou seja: todo o tempo que se esperou pela queda de ambos, empurrando Hitler e Mussolini para a guerra, foi o tempo de um Holocausto!
Estamos agora no séc. xxi, no tempo de Calígulas nossos contemporâneos. E a capa da revista Courrier Internacional de Dezembro de 2018 era dominada por uma pergunta assustadora: “Agora mandam os brutos?” Tentando explicar quais as razões que terão feito o mundo entrar numa era de crueldade e de impunidade para os poderosos, a capa da revista emparelhava Bolsonaro com Trump, Duterte com Erdogan, Putin com Xi Jinping e Salvini com Bin Salman. Nessa altura, ainda não era Boris Johnson o primeiro-ministro britânico, mas pouco faltava. Jornalista e político deveras aldrabão, que adora comportar-se como um truão, o ex-mayor (presidente da câmara) de Londres é “corporativamente” considerado um político “inteligentíssimo” por vários jornalistas portugueses e estrangeiros que sobre ele escreveram, e que eu pude ler, encantados por ele conhecer muito bem os clássicos e ser um “bruto” na política, o que – como já salientou, por exemplo, um semanário francês de centro-direita, Le Point – “tem a vantagem da clareza”.
Como narra Suetónio em Os Doze Césares (séc. ii d.C.), Calígula “inflamava o coração dos romanos procurando a popularidade por todas as formas”. A mesma preocupação que têm, 20 séculos depois de Calígula, sobretudo Trump, Duterte, Erdogan, Salvini, Bolsonaro e Boris Johnson, mais dependentes dos eleitorados do que Putin, que controla totalmente o sistema eleitoral; que Xi Jinping, que já é ditador vitalício; e que Bin Salman, que domina a monarquia mais obsoleta, ultra-reaccionária e torcionária à face da Terra. Onde os autoritarismos prosperam, quer em ditadura quer em democracia, tudo parece ser permitido. Como salienta o politólogo russo Fyodor Lukyanov, o crescente desdém pelas normas éticas explica, sem dúvida, a sinistra progressão dos baixos instintos, quer na política nacional, quer na política mundial, com óbvia influência nos conflitos que assolam o planeta.
Sem esquecer os contextos históricos tão distintos, bem podemos dizer, hoje, que as terríveis atrocidades cometidas por Calígula durante os três anos, dez meses e oito dias (do séc. i d.C.) em que reinou como imperador – até ser assassinado quando tinha 29 anos – só muito dificilmente poderiam ser comparadas com as carnificinas cometidas durante o séc. xx, Holocausto incluído, e mesmo com as carnificinas já cometidas, ou ainda em curso, no séc. xxi. Mas Calígula, a sua loucura e total indiferença pelas vidas alheias continuam a ser o modelo no qual se podem rever, indubitavelmente, Rodrigo Duterte, Donald Trump e Matteo Salvini, assim como o autocrata russo e os ditadores chinês e saudita. Bolsonaro também despreza a vida e a dignidade dos adversários mas, além de ser, de longe, o mais desfavorecido pela inteligência, ainda não passou à prática o que nele há de pior. No entanto, há em quase todos estes políticos brutais – assim como no Calígula caracterizado por Suetónio – “dois vícios absolutamente opostos: uma insolência extrema e, por outro lado, uma extrema cobardia”. E não nos iludamos em relação ao actual Presidente dos EUA. Como escreveu o insuspeito Thomas Friedman, no New York Times, Washington está disposta a ignorar todas as violações dos direitos humanos, ou todos os assassínios cometidos por um Estado, desde que este tenha boas relações pessoais com Donald Trump – sendo o caso da Arábia Saudita, nesta era de Bin Salman, o mais evidente e repugnante.
Desfazendo acordos, pactos e tratados internacionais – com o perverso prazer de uma criancinha que vai deitando abaixo uma construção do Lego que o pai ou o avô ergueu pacientemente para a entreter –, Trump conseguiu que os EUA tenham deixado de ser “um factor estabilizador da ordem liberal, abrindo, pelo contrário, o caminho para a desordem global”. Não admira que Trump – já esquecido o insulto que o então mayor de Londres lhe lançou em 2016, considerando-o um candidato presidencial de uma “ignorância estupidificante” e sem perfil para se instalar na Casa Branca – tenha agora manifestado uma enorme satisfação pela “ascensão” de Boris Johnson a primeiro-ministro, tal a simpatia que nutre por todos quantos ponham em causa a União Europeia. Esta, porém, seguindo as pisadas da NATO, continua a vergar-se aos perigosíssimos comportamentos do Presidente dos EUA e às atitudes provocatórias da Casa Branca, por exemplo, face ao Irão.
O que está a suceder no Médio Oriente, que leva Donald Trump (ou quem está por trás dele e o empurra) a provocar o Irão, é consequência da desastrosa invasão do Iraque pelos EUA, Reino Unido e aliados, em 2003, cujo desfecho foi a derrota dos sunitas, para grande proveito dos xiitas. Como escreveu Robert Baer, em 2008, no seu livro A Irresistível Ascensão do Irão: “Foi o Iraque que se perdeu. Foi o Irão que ficou a ganhar”. A vitória dos xiitas iraquianos em eleições legislativas foi motivo de regozijo para o Irão. O Iraque de Saddam Hussein já não existe graças à óbvia ignorância política de George Bush filho e ao grosseiro erro estratégico do clã neoconservador que o aconselhava – em contraste com a inteligência política de George Bush pai, quando decidiu não invadir o Iraque após a vitória do general Norman Schwarzkopf na Guerra do Golfo (1990-1991). Muito preocupada com as sucessivas asneiras dos EUA no Médio Oriente (não só no Iraque, mas também na Líbia e na Síria) está, obviamente, além de Israel, a Arábia Saudita, perante o Irão xiita a alargar a sua influência estratégica na região. Não admira que israelitas e sauditas tentem empurrar Trump e EUA para uma guerra com o Irão.
Mas regressemos à União Europeia, cada vez mais vulnerável e desorientada nos seus desígnios estratégicos. Nenhum dos Calígulas que nela despontaram, tanto na Hungria como na Polónia, mas também em França e sobretudo na Itália, são capazes de assumir claramente as suas origens históricas e ideológicas. Há até certos jornalistas sabichões (também em Portugal) que acham incorrecto atribuir aos movimentos populistas de direita antecedentes fascistas ou nazis, porque se trata – dizem eles – de um fenómeno político novo (?) que nem eles sabem ainda no que vai dar (!). Ou seja: há palavras que escaldam ou queimam e que, por isso, não devem ser usadas na imprensa supostamente “de referência”. Todavia, não é nada difícil – nem sequer tabu – identificar não só a nostalgia dos autoritarismos do primeiro quartel do século passado, mas também as raízes desses populismos autoritários em ascensão na Europa, claramente neofascistas e neonazis.
Tomemos o caso do vice-primeiro-ministro e ministro do Interior italiano, Matteo Salvini, chefe do partido de extrema-direita, separatista, racista e xenófobo Lega (antiga Lega Nord). Nunca o ouvimos reivindicar como antecedente o fascismo nem manifestar expressamente a sua admiração por Mussolini. Todavia, Salvini pronuncia várias vezes por dia frases que são citações bem conhecidas do antigo ditador fascista, como, por exemplo: “Quem fica parado está perdido”; “Quantos mais os inimigos, mais orgulhoso me sinto”; “Estou-me nas tintas” (“Me ne frego”). Como salienta o jornalista Piero Sansonetti: “É evidente que Salvini pretende fazer passar aos seus eleitores a mensagem de que ele próprio sente certa simpatia por Mussolini e pelo seu regime fascista”. É a nostalgia de algo que os eleitores não sofreram na pele, transformando uma monstruosidade em mito salvífico.
Mais moderado embora “bruto” parece ser o Calígula inglês Boris Johnson, porém tão racista como Enoch Powell (1912-1998), o líder da extrema-direita inglesa que discursou sobre “rios de sangue” contra a imigração, em 1968, mas que chegou a ser ministro da Saúde, entre 1960 e 1963, num governo conservador do primeiro-ministro Harold Macmillan. É famoso o texto que, em 2002, o então jornalista Boris Johnson escreveu sobre a Rainha Isabel ii nas suas visitas aos países membros da Commonwealth, a ser saudada por “pretinhos a agitar bandeirinhas”. Em comum com Enoch Powell, doutorado em Grego Antigo aos 25 anos, Boris Johnson tem o conhecimento dos clássicos. Em comum com Calígula – que gostava de esgrimir como um gladiador trácio, conduzia carros nos circos romanos e era dançarino – tem o facto de ser um desportista que sempre gostou de posar para os tablóides. Ah, é verdade, quando era jornalista também gostava de “inventar por completo alegados projectos absurdos de Bruxelas” engendrando “uma competição para ver quem melhor ridicularizava a União Europeia” (texto de Luís M. Faria na Revista do Expresso de 27/Julho/2019). Já Calígula foi afastado a muito custo do projecto de uma atrocidade abominável: “Dizimar as legiões que se haviam revoltado outrora, após a morte de Augusto, por terem então cercado o seu pai, general delas, e ele próprio (Calígula) então de tenra idade”. Sabe-se que também não terá conseguido fazer cônsul o seu cavalo Incitato, para o qual mandou construir “uma cocheira de mármore e uma manjedoura de marfim”, além duma casa sumptuosa.
Estamos aqui no domínio do narcisismo – patológico em Calígula – e que também parece afectar, hoje, elites arrogantes, aparentemente revoltadas, que desprezam o povo e a evidência da morte combatendo o tempo através do jogging, dos patins em linha e dos regimes anti-oxidantes. Entretanto, o homem do povo é modesto e aceita com sábia resignação a fatalidade do envelhecimento, tal como a realidade objectiva da degradação do corpo. É o que refere Christopher Lasch (1932-1994), intelectual norte-americano de tradição marxista, no seu magnífico ensaio A cultura do narcisismo (1979), onde denuncia o narcisismo pós-moderno que se apresenta “superiormente” educado e acompanhado duma nostalgia de posturas psicológicas antigas. É, aliás, o narcisismo que, quer na política quer na imprensa, sustenta as imagens tablóides de narcisistas como Donald Trump e Boris Johnson, para só citar os exemplos mais óbvios. Aos quais não resisto à tentação de juntar a imagem de Marcelo Rebelo de Sousa, Presidente da República, cujo narcisismo e perversidade são de uma evidência incontestável, embora não tenha, de forma nenhuma, a crueldade de Calígula ou a brutalidade de Trump ou de Boris Johnson. A frase é uma mistificação mas cito-a: “São brandos os nossos costumes”…
Escreve sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990