Lampejo de defesa da política com seriedade


Dez anos depois de ter deixado de ser deputado, concluo que nada justifica a ausência de tempo para a família, o afastamento daquilo de que gostamos ou os desvios nas rotas da amizade.


O exercício de funções públicas, em especial as políticas, se levado a sério, é uma experiência muito mais intensa do que parece. Não é essa a perceção da generalidade das pessoas, nem a valorização pública conferida a um exercício em que a burocracia, a vontade de concretizar, a necessidade de estabelecer padrões éticos de decisão a par da observância da legalidade e a exiguidade das horas do dia perfazem o quadro de referência. É claro que ninguém é obrigado a ir para a política e até há cura para esse impulso de participação na gestão da comunidade, mas, dez anos depois de ter deixado de ser deputado, concluo que nada justifica a ausência de tempo para a família, o afastamento daquilo de que gostamos ou os desvios nas rotas da amizade. Não se trata apenas de não haver gratidão ou reconhecimento, mas de não haver pingo de esforço de destrinça entre o trigo e o joio. A avaliação popular leva pouco em conta a seriedade, a dedicação e o rigor no exercício das funções públicas; por vezes, até perpassa a sensação de que gostam de ser enganados ou, pelo menos, não perturbados com chatices. Então, se tiver uns trocos no bolso ou se o contraste com anteriores gestões for positivo, a anuência é a regra.

Estamos em 2019, no séc. xxi, mas há demasiados protagonistas políticos que insistem em não mudar o chip no exercício de funções públicas. Insistem em leituras da legislação, persistem na construção de narrativas sem nexo com a realidade e ensaiam exercícios retóricos destinados a iludir os cidadãos. Sabem que na vertigem tribalista em que se transformou o combate político haverá sempre uma prole que sairá em defesa das suas narrativas para tentar fazer caminho de indução na consciência coletiva. Na dúvida, ensaia-se uma manobra de diversão ou de distração. Na dificuldade, compara-se com os anteriores ou projeta-se a responsabilidade dos enviesamentos aos antecessores. E pelo meio, em desespero, entra-se em derivas que sinalizam à comunidade uma chico-espertice grave para o cumprimento mínimo das regras, que são letra de lei. Se a letra está mal, mude-se a letra. Afinal, se já se fez uma remodelação governamental para superar uma incompatibilidade em apreciação no Tribunal Constitucional, ainda haverá limites para um certo vale- -tudo?

No séc. xxi, na sociedade digital de um Estado democrático de direito, o escrutínio tende a sobrepor-se à opacidade, deixando sem margem para ilusões com manigâncias quem as pretenda realizar e quem queira estar informado e decidir com critério. Hoje, ao invés do passado, mais tarde quase tudo se sabe, podendo haver sempre proteções partidárias, de classe ou de interesses que sustentem cortinas de fumo – por exemplo, como acontece com os jornalistas que eram avençados do saco azul do GES.

Não, não pode haver complacência com atitudes que violam a transitoriedade do exercício de funções públicas, como se o Estado estivesse capturado ou fosse modelado em função de interesses que não os comuns.

Não, não é aceitável que um titular não fale verdade, não explique o sentido das suas opções ou persista em tratar os cidadãos como se fossem deficitários de neurónios, com desculpas esfarrapadas ou narrativas mirabolantes.

Não, não é tolerável que a manutenção do exercício assente na falta de princípios, na ausência de coerência política e numa navegação à vista, sem rotas para a resolução de questões estruturais.

A política de casos não acontece apenas porque a esquerda é mais descuidada no exercício de funções públicas do que a direita. Acontece porque se passaram linhas vermelhas, como já se tinha ultrapassado noutros patamares do poder, à esquerda e à direita. Enquanto se entretêm com os casos de turno, deixam margem para os alheamentos da participação cívica, os populismos fáceis e a emergência de realidades políticas sem visão integrada da sociedade portuguesa. Em relação a estes como aos em funções, tudo se parece resumir a ser uma questão de oportunidade. Havendo oportunidade, há exagero, incompetência ou competência para mobilizar nichos eleitorais. Havendo oportunidade, dá-se expressão ao espírito de sobrevivência, com geometria variável, sem grande preocupação de exigência. Sem oposição e sem exigência popular, há todo um mar de oportunidades até que se saiba.

E andamos nisto, numa convergência de confusões entre Estado e partido, entre política e negócios, entre interesses particulares e o interesse geral. Sem exigência, dos titulares e dos cidadãos, andaremos sempre à procura de desculpas, de interpretações e de pareceres para justificar o que o bom senso nunca compreenderá.

Seria possível fazer diferente, mas não há ambiente. No poder, na oposição e na comunidade há um conjunto de equilíbrios construídos num rendimento mínimo político em que todos ganham alguma coisa para anuir. Até ao dia em que despertam, estremecem e se indignam, provavelmente tarde. Afinal, tendemos a chegar tarde aos encontros com a História. Não é sina, é falta de vontade, conformismo.

NOTAS FINAIS

DOIS PESOS, DUAS MEDIDAS Há uma total incoerência entre a exigência política na destituição do ministro da Cultura João Soares, por umas ameaças de tabefes a um colunista, e a miríade de casos e casinhos que sucederam nestes quatro anos.

NEM PIA A menos que esteja em pleno exercício de magistratura de influência nos bastidores, em segredo, não se compreende que perante a dimensão das consequências da greve dos camionistas a partir de 12 de agosto, o Presidente da República pareça ausente quando está presente em tanta irrelevância.

Escreve à segunda-feira