Nancy Bishop. “Muitos atores acham que os diretores de casting são muito poderosos. Não somos”

Nancy Bishop. “Muitos atores acham que os diretores de casting são muito poderosos. Não somos”


A conhecida diretora de casting norte-americana passou por Espinho, como oradora convidada do FEST, onde conversou com o i.


A primeira coisa que Nancy Bishop pergunta ao entrar na sala é se esta vai ser uma entrevista filmada. Respondemos com uma graça: que não lhe vamos fazer um casting. Depois de, há mais de 20 anos, ter trocado os Estados Unidos pela Europa, para se fixar em Praga, onde começou a trabalhar no teatro, como encenadora, Nancy Bishop acabou por reorientar a sua carreira para o mundo do cinema. Diretora de casting e preparadora de atores, é também diretora do Film Acting Department da Prague Film School. Trabalhou ao longo dos anos com nomes como George Lucas (Red Tails, 2012), Joel Schumacher (Bad Company, 2002) e Roman Polanski (Oliver Twist, 2005) e foi nomeada para um Emmy, pela direção de casting na conhecida minissérie que conta a vida de Anne Frank. 

Para a maior parte dos atores, um casting não é um lugar confortável. E para os diretores de casting?

Sim, muitos atores ficam nervosos com os castings. Não é um lugar confortável para se estar, ser ator. E quem quiser ser ator tem que ser capaz de se habituar a esse sentimento, porque é assim que funciona. Há um conjunto de parâmetros de que estamos à procura e o que é interessante para nós é perceber o que é que aquela pessoa traz dela para o papel: todas as pessoas são diferentes e é a química entre aquela pessoa e do que ela traz combinada com o texto e a história que cria o papel. 

Há o risco de o processo de casting se tornar superficial, de alguma forma? Muitas vezes um ator é escolhido pela sua aparência, por exemplo.

Claro que, por vezes, há parâmetros muito específicos. Se o que procuramos for, por exemplo, alguém para uma personagem com ligações [familiares] a outra, é suposto que haja parecenças. Portanto, sim, por vezes há parâmetros físicos para um papel, mas há outras questões que são tidas em consideração. O que é realmente importante é responder a uma questão: acredito nesta pessoa para este papel? E isso não é superficial. 

E como é que se chega a essa resposta?

Estamos aqui as duas sentadas agora e você será capaz de dizer se consigo convencê-la ou não. Não acho que seja preciso muito tempo para perceber se acreditamos em alguém, se a pessoa nos parece convincente para um papel ou não. 

Para lá desses parâmetros, ou exigências iniciais do papel e do próprio realizador, o que é que carateriza depois a sua forma de trabalhar, em particular? No final, resume-se tudo a esse instinto do “acredito” ou “não acredito”?

É sempre diferente. Muitas vezes, aparecem atores magníficos, e pensamos “uau, este ator é mesmo bom”, mas que percebemos que não vamos poder usar dessa vez. Ou porque não tem a energia certa para o papel, porque nos parece que não é o certo para aquela personagem em particular, ou porque não se enquadra no projeto até. É preciso olhar para o projeto e tentar perceber se um ator encaixa com os outros, se encaixa na paleta, naquele mundo que estamos a criar para a câmara. Por exemplo, um ator com um visual irrepreensível, de modelo, parecerá demasiado perfeito se o universo que estamos a criar é um universo de pobreza. Talvez precisemos de alguém com maus dentes.

O que é cada vez mais difícil de encontrar.

Na masterclass que dei [no festival] dei o exemplo de quando andava à procura de atores com um aspeto mais grosseiro e na verdade acabei por encontrar as pessoas de que precisava numas obras.

Acontece frequentemente chegar a procurar atores para um papel que, só no processo, perceberá que não resultará interpretado por um ator?

Fazemos casting de rua, às vezes, sim. Mas isso está sobretudo dependente das preferências do realizador. Há realizadores que gostam de trabalhar com pessoas comuns, com as quais nos cruzamos na rua, e outros não. 

Ainda em relação à questão da aparência. Poderá esta espécie de obsessão com uma forma qualquer de perfeição pela qual temos caminhado enquanto sociedade tornar-se contraproducente, a dada altura?

Há projetos para os quais procuramos exatamente pessoas imperfeitas. Sobretudo no realismo social.

Hoje em dia são cada vez mais usuais os castings não presenciais. O que é que está a mudar com isto?

É maravilhoso. Passámos a poder fazer castings com pessoas que estão a grandes distâncias. Se estiver em Praga, por exemplo, e precisar de um ator português não tenho de apanhar um avião para Portugal. Podem enviar-me uma gravação, que já nos dará uma ideia, podemos fazer casting a uns 30 atores portugueses e, no final, levar dois deles até ao realizador, ou marcar um Skype. Dá-nos muito mais possibilidades. Diria que tem mais de bom do que de mau. 

Exato. Ia perguntar-lhe o que é que se perde com esta nova forma de trabalhar. 

Claro que é bom conhecer pessoas. E estamos a perder essa interação. 

É essa a melhor parte do seu trabalho? Conhecer pessoas, observá-las?

É divertido. 

Qual é o seu processo no trabalho com os realizadores?

Normalmente começamos pelo argumento. Fazemos umas leituras e uma lista dos personagens com descrições, que discutimos com os realizadores, e depois vamos à procura de atores. 

É um dos primeiros passos na passagem do que está ainda no papel para algo mais palpável, com vida própria. Imagino que num processo semelhante ao de quando se lê um livro e se cria imagens mentais dos personagens

É. E normalmente é também a primeira vez em que o realizador vê o argumento ser lido em voz alta, portanto é uma fase de aprendizagem para o realizador também. 

Começou a sua carreira como encenadora. A transição para diretora de casting veio do gosto pelo trabalho com os atores?

Eu sabia dirigir atores, mas não sabia necessariamente trabalhar com a câmara, e isso fui aprendendo com o tempo. Claro que não é difícil ligar e desligar uma câmara, qualquer pessoa é capaz de o fazer. Mas levei algum tempo a perceber o que resulta em frente a uma câmara ou não, e como dirigir os atores.

Porque é muito diferente dirigir atores para cinema ou para teatro. 

Sim. O que resulta no ecrã tem mais a ver com o que se passa no olhar; enquanto em palco tem mais a ver com o corpo. Foi um processo de experimentação e erro, e isso foi o que me levou a escrever o meu livro também. 

Está a referir-se ao seu primeiro livro, Casting Couch: On Camera Strategies for Actors from a Casting Director?

Sim, agora já tenho dois. Fui aprendendo com os atores, porque a formação da maior parte dos atores também continua a ser em teatro, não em cinema. E foi também por isso que comecei a dar aulas e workshops.

Há algum projeto particular em que tenha trabalhado ou alguma descoberta num casting em que tenha especial orgulho?

O que me deixa feliz é quando o elenco resulta como um todo. Não vejo isto necessariamente como encontrar uma pessoa; vejo-o como um exercício de fazer com que o todo resulte no ecrã. Sinto-me feliz por ter tido o privilégio de fazer com que um conjunto de atores europeus chegasse a grandes filmes. Fico feliz quando vejo, num festival de cinema, um ator que depois consigo levar para uma grande produção. 

É essa a maior realização a que um diretor de casting pode aspirar?

É sobretudo, como disse, fazer com que tudo resulte no conjunto, ajudar a que aquele mundo seja credível. Um dos trabalhos mais difíceis é fazer castings a crianças. É preciso trazê-las para este mundo, ativar a imaginação delas. É um processo diferente, não podemos dar-lhe as mesmas indicações que damos aos adultos. E, muitas das vezes, também não conseguimos fazer múltiplos takes com elas, temos de agarrar o que conseguirmos nos primeiros. 

O que lhe ensina a sua profissão sobre as pessoas, sobre o ser humano?

Não sei se tenho uma resposta para isso. É um trabalho que adoro e uma das razões para isso é a interação que possibilita com outras pessoas. Acho que muitas pessoas, e muitos atores, julgam que os diretores de casting são muito poderosos. Não é o que sentimos. Também nós estamos numa cadeia alimentar, também nós somos freelancers, também nós somos contratados e podemos ser despedidos pelas produtoras.