Olhando a sua obra, é como se o sobrenome de Irma Blank só pudesse ter sido este. A artista que, pelo desenho, foi capaz de esvaziar a linguagem, de fazer das línguas tábua rasa – talvez por isso tenha sido olhada durante tantos anos não como artista, mas como poeta experimental. As páginas do livro acima, por exemplo: a uma certa distância, acreditará o leitor desprevenido que se trata de um livro; aproximando-se, essa ideia de texto dará lugar a uma repetição de movimentos miméticos da tipografia.
Discorria Herberto Helder n’ Os Passos Em Volta (1963) sobre a possibilidade de, repetindo uma palavra muitas vezes, a esvaziar do seu significado. O caminho de Blank foi outro, numa obsessão que começou quando em 1955 se mudou da Alemanha, onde nasceu, para Itália, o país do seu marido. Encurralada entre duas línguas – a sua língua materna, o alemão, e o italiano que se viu forçada a aprender na Sicília de meados do século passado – terá dito um dia que “não existe a palavra certa”.
“A chegada à Sicília foi uma experiência fundadora para o seu trabalho. Teve de se apropriar de outra língua e, com essa língua, de outra cultura e apercebeu-se de que existem coisas numa língua que não existem noutras”, explica ao i Joana P. R. Neves, curadora da exposição, com Johana Carrier, ao fim de três anos de pesquisa sobre o trabalho da artista alemã. “Como é que, não falando italiano, se situava neste contexto e se exprimia? E como é que a língua tem esta capacidade de multiplicar o seu significado? Ela apercebeu-se de que há estados emocionais que estão ligados a uma forma de língua e que há uma língua que está ligada a estados emocionais e isso criou um momento de grande intimidade consigo própria, de questionamento acerca do seu próprio posicionamento dentro da língua – das línguas – e do significado.”
Foi desse momento que nasceu Eigenschriften (escritos para si próprio), a mais antiga das séries percorridas por Blank. A exposição que a Culturgest inaugura hoje às 22h com a presença da artista que, aos 85 anos, vive atualmente em Milão. É a primeira retrospetiva internacional e primeira exposição individual em Portugal de Irma Blank e, com produção original da Culturgest, percorrerá depois, entre 2019 e 2021, seis museus, com novas configurações em cada nova apresentação. Primeiro o Mamco – modern and contemporary art museum de Genebra, e depois o CAPC, em Bordéus, o Center for Contemporary Art de Telavive, o ICA, em Milão, e o Museo Villa dei Cedri, em Bellinzona, para, já no outono de 2021, chegar ao Bombas Gens Centre d’Art, em Valência.
A criação de um novo alfabeto Ao longo de sete salas, Blank percorrerá as várias fases da obra de Irma Blank – que de qualquer forma a artista continua a ver como um todo – e quase no final veremos como, mesmo depois de um problema de saúde que a deixou com o braço direito paralisado, aprendeu a dar continuidade a um trabalho que nos primeiros anos era tinha sido da mais laboriosa minúcia.
Se em Eigenschriften (1968-1973) as marcas gráficas repetidas copiavam a aparência de um texto escrito à mão – com as diferenças que marcam as variações de cada linha, de cada página e de cada composição – na série seguinte, Trascrizioni (transcrições), na qual trabalharia até ao último ano dessa década, dedicou-se a fazer transcrições de páginas de jornais ou livros publicados, para esta sua nova língua, visual e impercetível. A essa série pertencem as imagens de um dos livros que construiu, acima. Ou o impressionante dítico (nunca antes mostrado numa exposição) ao longo do qual faz suceder, com alfinetes, todas as páginas de um livro (de novo ilegível): Großes Poem mit Erklärung (grande poema com anotações). De novo impercetível.
Impercetível, para nós. Porque Irma Blank – que já numa outra fase de produção, em Global Writings (2000-2016) acabaria por inaugurar um novo alfabeto, composto digitalmente por apenas oito consoantes (c, d, h, j, l, m, r, t) – é capaz de ler aquelas suas Trascrizioni da década de 1970 em voz alta. Através de “um zumbido cujo ritmo específico, indexado ao texto transcrito, é uma nova interpretação da palavra impressa”. Em direção àquilo que Joana P. R. Neves descreve como “uma escrita sem palavras”.
E explica: “A ideia de Irma Blank é, à medida que vai avançando, encontrar uma língua universal. É libertar as palavras do seu significado. Compreende a palavra como um contentor, tira-lhe o conteúdo e usa a palavra desconstruindo-a: pelo som, pela linha, pela distribuição na página. Há mesmo uma ideia de se escrever a si própria através da gestualidade, através da presença do corpo no desenho.”