A histórias de narcotráfico colombiano está o mundo mais do que habituado. Pablo Escobar, Medellín e tudo o que arrastarem consigo, no glamoroso tom que lhes quiser dar o verniz do género por cima. No grande (e no pequeno) ecrã, habituado ou saturado já, talvez, nesta altura em que a dupla colombiana Ciro Guerra e Cristina Gallego nos trazem Pássaros de Verão. Um filme que não veio para ser olhado como mais um, entre outros, mas que vem reescrever a história que, de fora, Hollywood e a Netflix têm contado.
“Começámos a perceber que o imaginário coletivo colombiano estava de alguma forma relacionado com o narcotráfico – o narcotráfico e a sua glamorização – e que isto vem das histórias que estão nas séries e no cinema desde a década de 1980 e que acabaram por moldar o nosso imaginário como colombianos”, começa por notar Cristina Gallego, numa conversa de Skype com o i, da Colômbia, para ir depois direta ao problema – e ao que os levou a querer fazer este filme. “Quando percorremos a história do cinema colombiano, não encontramos mais do que cinco filmes sobre o narcotráfico. Percebemos que toda esta ideia foi construída a partir de fora e que, aqui, há um tabu em torno disso. O que interessou sobretudo explorar [em Pássaros de Verão] foi esta ideia: como é que sendo os protagonistas desta história não falamos sobre ela?”
Pois decidiram falar. Quebrar o tabu. Para isso, nada mais acertado do que uma viagem até à península de Guajira, território no extremo norte da Colômbia, palco de uma disputa histórica com a Venezuela e casa da maior comunidade nativa do país: o povo wayuu. Justamente o lugar em que, nos últimos anos da década de 1960, a Colômbia começa a contar a história da sua relação com o narcotráfico. Os anos em que às suas portas batia a chamada “bonanza marimbera”, um período que se estendeu de 1975 a 1985 durante o qual, com os camponeses a transformarem-se em produtores de droga, o narcotráfico fez entrar na Colômbia grandes quantidades de dólares. E foi Guajira um dos maiores palcos deste movimento.
Pelas suas planícies desertas, paisagem estranha ao imaginário construído pelas histórias que daria o Cartel de Medellín anos mais tarde, em Guajira e num tempo de transição da cultura wayuu de uma sociedade profundamente tradicional para a modernidade, virá logo no início de Pássaros de Verão um pastor cego cantar a canção que marcará o tom do que virá depois, ao longo de cinco cantos.
Como numa tragédia, como num grande épico, um pastor cego que, respeitando a tradição oral wayuu (“a forma de os wayuu passarem as suas histórias de geração em geração é através destas canções”), cairá em Pássaros de Verão como um Homero. Narrador de uma história que, desenrolada até ao início da década de 1980, nos fará de início saber de tudo. Sobre Zaida (Natalia Reyes), a jovem que encontramos no ritual de passagem à vida adulta, e Rapayet (José Acosta), o anti-herói que, das suas origens humildes, tentará conquistar o direito a casar-se com ela. Mas também sobre o poder que podem ter o destino – e os espíritos.
“A história desenrola-se a partir dessa canção, a forma de narrativa épica dos wayuu, ao longo dos anos seguintes, que nos deu a estrutura do filme”, diz Ciro Guerra, a quem Cristina Gallego, produtora de longa data dos seus filmes (e sua mulher), se juntou pela primeira vez neste filme também na realização. “Foi surpreendente perceber o quão semelhante é [a tradição oral wayuu] à forma como os gregos antigos contavam a sua História, o que faz com que esta estrutura seja, por um lado, algo que reconhecemos, ao mesmo tempo que nos liga ao mundo wayuu.”
E nos géneros (cinematográficos) baterá o ponto, neste filme que, um por um, desafiará todos os clichés. De novo Ciro Guerra: “Sempre que partimos para um novo filme, vamos à procura de formas de fazer diferente, de algo de novo, e sentimos que esta história, que toca alguns aspetos que tocava o filme anterior [O Abraço da Serpente, que contava a história de um explorador alemão que, gravemente doente, procura, no início do século XX a ajuda do o último sobrevivente da tribo dos cohiuanos na sua travessia do Amazonas], pela primeira vez se aproxima do cinema de género – com elementos do western, dos filmes de gangsters, da tragédia grega e com uma relação também com a tradição de Gabriel García Márquez.”
E olhemos para a personagem de Rapayet: “Neste tipo de histórias, seria o tipo que sobe e que se transforma num senhor da droga pela violência. Aqui, quisemos desconstruir ao arco tradicional do protagonista dos filmes de gangsters. Ele é apenas um homem naïf que vai, de uma forma muito naïf, em direção a uma catástrofe com a qual não está preparado para lidar. A dada altura, apercebe-se da desgraça que as suas ações trouxeram ao seu povo e isso afeta-o, assim como os espíritos.”
Não será preciso que chegue o final. Ao quarto canto, já Rapayet estará perdido. “Os espíritos estão ofendidos. Perdemos a nossa alma. Já nada nos poderá proteger”, dirá. “Queríamos falar sobre este fado, sobre esta tragédia do ser humano”, volta Cristina Gallego, que vem construindo ao longo dos últimos anos carreira como produtora e teve, neste filme que passou no ano passado por Locarno, a sua estreia na realização. “Ao longo dos séculos, os wayuu foram fortes, foram capazes de gerir dinâmicas com vários países – não só com os espanhóis, também com os holandeses, no Caribe. Lidaram com tudo isto, mas esta quantidade de dinheiro [da bonanza marimbera] e a violência são capazes de destruir qualquer coisa, qualquer pessoa, qualquer alma.”