1. Foi publicado mais um livro de coscuvilhices e de pseudossegredos sobre o funcionamento da Casa Branca no período da administração Trump – em editoras de todo o mundo, exalta-se que será mais um campeão de vendas. Publicita-se pelo mundo fora que será, de novo, uma obra que deixará o mundo incrédulo – e que o seu autor, Michael Wolff, se reerguerá ao estatuto de herói da democracia e da verdade à escala planetária. Promessas ajustadas à nobre tarefa de tão-somente… vender livros. Se é verdade (hoje praticamente incontroversa) que o primeiro livro de Wolff sobre o Presidente Trump não passou de pura pornografia intelectual, repleta de mentiras contorcidas e realidades distorcidas –, este segundo livro é verdadeiramente puro exercício de comércio livreiro, criando-se uma ficção a partir de uma personalidade histórica ainda em exercício de funções (e que se prevê, com cada vez mais certeza, que assim se mantenha até 2024).
2. Michael Wolff percebeu, no entanto, que a sua oportunidade histórica de lucrar milhões e de se projetar mediaticamente não se iria repetir nos anos vindouros – e que gozar com o Presidente Trump lhe daria o pretexto ideal para se reconciliar com a esquerda liberal (bem como com alguns setores conservadores), que sempre o achou um jornalista mercenário, senão mesmo um pândego com pretensões a intelectual. Portanto, Michael Wolff – num exercício de pura racionalidade económica – aceitou prestar-se ao papel de publicar um livro de pura propaganda. É que, na verdade, o autor material do livro Siege – Trump Under Fire ( lançado há escassos dias em todo o mundo) não é Michael Wolff – é antes uma figura, também ela, bastante controversa e que gera amores e ódios de estimação nos círculos políticos, intelectuais e mediáticos em todas as latitudes e longitudes. Referimo-nos a Steve Bannon. De facto, o livro Siege – Trump Under Fire é, porventura, a obra de propaganda mais exemplar (e eficaz) manobrada por Steve Bannon. É curioso notar que Steve Bannon passou de Darth Vader, de uma espécie de reincarnação de todo o mal da humanidade, tal como era retratado pelos média liberais, a uma figura inteligentíssima, um ser intelectualmente superior, uma personalidade dotada de muita finesse. Em que momento se deu a viragem na apreciação do “diabo Steve” que passou a “deus Bannon”? Ora, precisamente no momento em que Steve Bannon abandonou a Casa Branca, foi forçado a deixar a administração do Breitbart e a família Mercer dele se distanciou (recorde-se que nos reportamos aqui a um dos principais financiadores do GOP).
3. O próprio Bannon tem marcado uma posição ambivalente em relação ao Presidente Donald Trump: por um lado, publicamente, elogia as capacidades do Presidente, a sua determinação, a sua visão estratégica, o seu poder de execução; por outro, discretamente, Bannon vai utilizando os meios de comunicação social e personalidades de esquerda para condicionar alguns dos setores que compõem a administração Trump. Ou seja: Steve Bannon – mais do que elogiar o Presidente Trump ou esta administração em particular – concentra-se em vigiar o cumprimento das ideias centrais do movimento populista (de que ele se acha o pai, remontando já ao Tea Party). Assim, quando o Presidente Trump aplica medidas que merecem a concordância de Steve Bannon, este surge a apoiar o Presidente, apelando até para as reforçar ; quando o Presidente Trump aplica medidas credoras da discordância de Steve Bannon, este utiliza os meios de comunicação social esquerdistas para relembrar, por vias mais ou menos insidiosas, que Trump terá de se manter na linha programática do seu movimento populista. Numa palavra: a propaganda de Steve Bannon orienta-se pela defesa do trumpismo, apesar, ou até em prejuízo, de Donald Trump. O “grande estratega” ou o “mestre manipulador” – como já foi apelidado – percebe as técnicas de propaganda como ninguém; sabe, portanto, que a propaganda mais eficaz é aquela que é feita por um alegado “inimigo”, vendendo aquilo que o “inimigo” quer ouvir, ao mesmo tempo que se controlam os “aliados”, sempre prontos a converterem-se em “adversários”. Há que controlar o mensageiro para tutelar e dar força à mensagem. E o mensageiro perfeito é alguém que é acarinhado pelos “inimigos”, que está desesperado por dinheiro ou notoriedade, que se revela disponível para trocar qualquer princípio ético ou moral em prol de uma conta bancária mais folgada e estatuto de celebridade, que é absolutamente desprovido de ideias próprias e procura avidamente um “dono” para servir – pois bem, Martin Wolff é o guy perfeito para ser a derradeira peça da máquina de propaganda de Steve Bannon.
4. Não se deixe enganar: o livro que tenciona adquirir não é o livro, em rigor, de Martin Wolff, é uma das mais lídimas peças de propaganda de Steve Bannon. O ex-chefe de gabinete do Presidente Donald Trump controlou a narrativa oferecida no livro da primeira à última página – se ler com minúcia, constatará que todos os capítulos da obra giram em torno de Bannon. Este é o único protagonista que é omnipresente em cada página. Mais: nos agradecimentos finais, Wolff (o autor meramente formal do livro) não se poupa em encómios afetivos a Steve Bannon, enaltecendo a sua coragem, a sua integridade, o seu caráter – palavras dignas de um fã dirigidas ao seu ídolo. Poderíamos aqui enunciar uma imensidão de passagens, histórias, testemunhos e apreciações políticas que provam a imputação da autoria material, intelectual e espiritual do livro a Steve Bannon. Destacamos a possibilidade, que é aventada no livro, de o próprio Steve surgir como candidato à Casa Branca (substituindo Donald Trump), formando o ticket com Sean Hannity, jornalista da Fox News. Ora, este cenário nunca foi colocado, nem sequer é conhecido como um rumor, por mais disparatado que seja: serve, no entanto, na perfeição a um dos pilares da propaganda de Steve Bannon: o de expressar a ideia de que ele é o patrono, o verdadeiro personificador da mensagem populista. Ele dispõe, pois, da legitimidade histórico- -carismática de excluir qualquer “traidor” à causa – leia-se: se o Presidente Donald Trump ceder à ala globalista que está na White House, passará a ser considerado um dos “inimigos”, sofrendo as devidas consequências.
5. Por outro lado, no livro é criado um outro mito que Steve Bannon adora alimentar: a de que o seu regresso à Casa Branca – com poderes reforçados, verdadeiro braço-direito de Donald Trump – está iminente; e só ainda não ocorreu por vontade do próprio. Steve Bannon seria, assim, o fantasma permanente na Sala Oval, tendo lá os seus mais fiéis aliados –, e sempre pronto a intervir em caso de emergência (ou seja, sempre que os globalistas, o establishment ameace controlar o Presidente Donald Trump). Em suma: o livro Siege – Trump Under Fire ( “Trump debaixo de fogo” em português) é o livro mais perfeito de propaganda pró-Presidente Trump, escrito materialmente por Steve Bannon. Serve para Steve acarinhar o seu enorme ego, em parte justificado pela sua inteligência e mestria em manipular jornalistas de esquerda, por um lado; e para permitir que o Presidente Trump prove, mais uma vez, o conluio da esquerda com os cultores das realidades alternativas. Isto porque o livro é tão disparatado, tão inverosímil, que qualquer erro cometido pela administração dos EUA parece razoável… E a política é, em grande medida, gestão de expetativas e de perceções.
joaolemosesteves@gmail.com
Escreve à terça-feira
Não se deixe enganar: o livro que tenciona adquirir não é o livro, em rigor,de Martin Wolff, é uma das mais lídimas peças de propaganda de Steve Bannon.