Devo à minha mãe ter crescido com uma paixão por cães. E sempre que a perda se verifica é algo que me abala profundamente. Estou, por isso, a escrever-vos choroso, triste, entre memórias felizes e episódios inolvidáveis que vivi com o Cassius Marcelus Clay. Ontem, por absurdo, tive um sonho ansioso – não sei mesmo se um pesadelo – em que não o conseguia distinguir de outros cães, todos iguais, para minha aflição e desespero. É o luto a fazer-se sentir. Esta peça, agora consciente, também é parte disso.
O Clay era um cão com personalidade, senhor do seu nariz, por vezes mal disposto, e indomável nas suas vontades como inconstante nos seus afetos. Não raras vezes, os meus amigos surpreenderam leves marcas dos seus dentes na minha pele. As suas orelhas arrebitadas – desproporcionais para o tamanho da cabeça e do focinho –, bem como a sua cauda felpuda, entre outros traços, davam-lhe uma aparência selvagem, a qual, nos seus dias de juventude, faziam lembrar um dingo. Era um cão incomum.
Essas idiossincrasias mais se acentuaram por força de caricato episódio no Porto, por volta dos seus três anos de idade, em 2009. Foi pernoitar, nessa viagem que fiz com a minha esposa, num hotel/clínica veterinária. Momentos antes de o ir buscar, ele, desconhecedor das minhas intenções, libertou-se das mãos incautas do veterinário e escapou. Senti-me culpado, ter-se-ia julgado abandonado? Não podia regressar sem ele.
A sua personalidade, ao contrário do seu porte, dava garantias de que jamais alguém o agarraria, mas encontrá-lo numa cidade como o Porto, à medida que os dias avançavam, era mais um desejo longínquo que uma realidade próxima. Foram quatro dias de frenético empenho e dedicação para o encontrar. O Porto, uma cidade que ele desconhecia, uma cidade que eu pouco conhecia fora dos ecos do trânsito da rádio e das referências à VCI ou à Arrábida. Foram quatro dias em que, após fazer publicar o anúncio do seu desaparecimento em rádios e jornais, de forrar o carro com as suas fotos e de fazer dezenas de “ comícios” na cidade, conheci, de facto, a extraordinária bondade e o desprendimento de muitas pessoas. Lembro-me que, em repetidas ocasiões, quando me aprestava a colar o anúncio numa parede ou num poste, ele já lá estava, impresso da internet, colocado por grupos de apoio animal capazes de gestos de que eu não sou capaz. Adotavam o nome, esses voluntários, de Refúgio das Patinhas, o que ainda hoje não esqueço, com eterna gratidão.
O momento em que o encontrei, não esquecerei. Advertido por uma senhora que o dizia ter avistado, encaminhei-me para o Nó de Francos e, depois de exibir a sua foto a um grupo de trabalhadores da Câmara do Porto que frustraram a minha expectativa, pois sim, tinha passado ali um cão, mas não aquele, insisti e, qual cena cinematográfica, dei com ele, frente a frente, ao dobrar a esquina. Estava amarrotado, pelo eriçado, calculo que maltratado pelo desespero – como eu – mas também por pessoas, desafortunadamente não aquelas que se cruzaram no meu caminho. Um mês depois, não era incomum receber chamadas a reclamar a recompensa, dizendo-o na sua posse, ao que eu retorquia, sarcástico, que ele devia possuir o dom da ubiquidade, pois ao pé de mim se encontrava nesses momentos. Foram dias que o marcaram. O medo nunca mais desapareceu, tornando-se progressivamente mais sensível ao toque e a sons crispados. Viveu a sua tormenta, mas foi exemplarmente tratado.
Este episódio fez-me representar uma realidade que vagamente conhecia: dos milhares de pessoas que se dedicam a intermináveis horas de voluntariado a favor desta causa. Não fora este cão – este episódio –, talvez não tivesse sido autor, em conjunto com o Pedro Delgado Alves, da lei que criminaliza os maus-tratos e o abandono dos animais de companhia, num tempo em que incontáveis petições inundavam a Assembleia da República e sublinhavam realidades por tratar, o dever de respeito pelos animais. Ele, o Clay, por ora, gozava os seus dias de reforma, muitas vezes na liberdade da serra de Monchique, outras enfrentando o rebentamento das ondas inclementes no tempo invernal da praia de Quarteira, até que, tomado pela doença impiedosa, me tive de persuadir a decidir o que não queria. A minha esposa teve a coragem, que não tive, de o acompanhar até ao último momento de consciência, de registar a sua fiel expressão de dedicação, para que não fosse sozinho, mas acompanhado. Eu não tive, não consegui.
Há um cientista que diz que as pessoas têm de aprender muito com os cães, porque cada vez que veem alguém de que gostam, ainda que seja cinco vezes por dia, ficam loucos de alegria.
Eu ficava louco de alegria sempre que o via.
Deputado do PSD e autor da lei de criminalização de maus-tratos e abandono de animais de companhia