Guilherme Figueiredo. “Um advogado criar sindicatos até faz lembrar o filme Há Lodo no Cais. É assustador”

Guilherme Figueiredo. “Um advogado criar sindicatos até faz lembrar o filme Há Lodo no Cais. É assustador”


Bastonário diz ficar surpreendido com colegas, membros ou titulares de órgãos que dizem publicamente que não foi feito nada na ordem.


O bastonário da Ordem dos Advogados admite que pode não ter comunicado da melhor forma durante o seu mandato, justificando que tudo se deveu ao seu estilo e à forma como encontrou “a casa”. Na entrevista ao i lembra tudo o que foi feito desde que chegou e aquilo que está disposto a fazer caso seja reeleito. Sobre o bastonato de Elina Fraga, afirma que não houve falta de comunicação. “Opaco foi o que se fez”, acusa. Sobre o caso do advogado Pedro Pardal Henriques, que parou o país em abril – com uma greve convocada pelo sindicato dos motoristas de matérias perigosas – e já criou outros sindicatos, Guilherme Figueiredo diz estar preocupado e afirma que o MP deveria agir.

Qual o balanço que faz do seu bastonato?

É um balanço muito positivo. Há um pouco a ideia de alguns colegas de que talvez não tenha sido feito muito trabalho. Existiu foi pouca comunicação. Não estou na ordem para aparecer sistematicamente na comunicação social, não estou à espera de criar nenhum partido nem coisas do género e, portanto, estou completamente à vontade no trabalho que vou desenvolvendo. Se compararmos com bastonatos anteriores, verifica-se, com toda a facilidade, que há aqui uma décalage enorme. Em primeiro lugar, encontrámos uma casa que tinha alguns problemas, e logo no primeiro ano do exercício conseguimos diminuir as despesas em 1,8 milhões de euros. É um pouco como se apresenta um espetáculo: as pessoas não sabem o que são os bastidores. Estivemos muito envolvidos em fazer reformas estruturantes e isso exigiu muito trabalho.

Reformas a que níveis? 

Ao nível dos recursos humanos, da gestão financeira, dos procedimentos, da contratação pública. Nada disto havia. Não havia contratação pública, gestão financeira no sentido rigoroso e, portanto, era preciso trabalhar para colocar a casa, a Ordem dos Advogados, com uma estrutura capaz de responder a isto. É um trabalho imenso que não se vê. É um pouco como as canalizações públicas: a maior parte das vezes, os autarcas não gostam muito porque não se veem, não há fotos. O que nós fizemos foi isso, foi criar, do ponto de vista estruturante, uma reforma nos serviços, na capacidade de agir e de ação imediata da própria ordem. Isso demorou imenso tempo, mas a verdade é que teve resultados muito positivos e são os resultados que importa depois sublinhar. E os colegas, aí sim, reconhecem. Criámos uma ordem que, neste momento, responde à contratação pública, responde do ponto de vista administrativo, responde às imensas solicitações que temos e responde sempre de uma forma eficiente. 

Mas e sem ser dentro da ordem?

Também fizemos uma reforma estruturante no que diz respeito à área da política legislativa. Temos cerca de 90 pareceres no âmbito legislativo para além dos pareceres aos colegas, e esses pareceres são absolutamente centrais e fundamentais. Já no que diz respeito ao trabalho no âmbito das eleições, está prevista uma assembleia-geral para decidir se vamos mesmo para o voto eletrónico. Depois tivemos ainda outras reformas, por exemplo, uma reforma que é fundamental e que tem a ver com as quotas dos advogados: mudámos os escalões, aumentámos o período de não pagamento de quota, mas há aqui uma sinalização que é fundamental. Esta casa nasceu em 1926 e nunca ninguém tinha diminuído quotas, só tinham aumentado. 

O que nós quisemos dizer com a reforma que estabelecemos foi que é possível diminuir o valor graças a uma gestão financeira rigorosa. A redução nas quotas de 2,5 euros pode ser pouco se pensarmos num caso, mas estamos a falar de um milhão e 250 mil de euros de redução para a ordem e, relativamente aos jovens, estamos a falar de muito mais. Esta era uma reforma que era necessária. Também se discutia há longos anos o problema do advogado associado.

O que fizemos? Criámos um estatuto do advogado, que já foi discutido mas ainda não está em funcionamento. Também nunca ninguém se tinha preocupado com as questões fiscais dos advogados. Depois também ninguém se preocupava com a circunstância do acesso à profissão, cujo regulamento tinha falhas gravíssimas. Ainda não chegámos ao fim dessa reforma, mas já a começámos e existe hoje uma alteração importantíssima no regulamento de estágio em que uma das partes é sobre os candidatos à advocacia, que tinham a sua inscrição suspensa. Se eles voltassem à profissão, voltariam de acordo com o regulamento que estava em vigor na altura em que deixaram. Isso era impossível porque teríamos imensos candidatos à advocacia que, quando voltassem, cada um deles tinha quase um curso diferente dos outros, o que era manifestamente inexequível. Se nós compararmos o que foi feito com o que tinha sido feito antes, estamos a falar numa décalage profunda e intensa. 

Mas e o trabalho com outras entidades?

Fizemos trabalho com as universidades, com a Assembleia da República, com o Governo. O próprio Governo, a dada altura, fez uma resolução ministerial, entregando à ordem a competência para escolher os peritos para definir os procedimentos relativamente aos lesados do BES. É um caso único em que nós convergimos por entender que a ordem tem no seu estatuto a defesa do Estado de direito e fazia sentido que nós pudéssemos contribuir. Estivemos numa das comissões relativamente às indemnizações, que teve a ver com os incêndios. Poderia dizer que, se formos rigorosos, e se existir uma retórica honesta e não meramente eleitoral, não tenhamos ilusões de que há aqui uma trabalho imenso por parte deste conselho geral e de mim próprio.

O bastonato de Elina Fraga foi muito criticado pela falta de comunicação, foi mesmo considerado opaco. Não entendeu desde logo que a comunicação era fundamental?

Entendemos que a comunicação era fundamental e chegámos a falar. O que acontece é que nós também não estávamos à espera de encontrar a casa que encontrámos. Havia muito trabalho a fazer. Não acho que o mandato da dra. Elina Fraga tenha sido opaco, acho que o que foi opaco foi o que se fez. Comunicação havia, e muita, o que acontecia é que não havia matéria. Nós fizemos e podemos ter comunicado mal para os colegas, o que aliás estamos a melhorar, mas isso tem a ver muitas vezes com o próprio estilo. Tenho um estilo muito mais discreto, em que olho sempre para o objetivo, para a eficácia de tratar desse objetivo e de conseguir chegar a bom porto, e menos relativamente ao demais. Agora, o problema é outro. Aqui há matéria e pouca comunicação, é exatamente o contrário.

Sente que precisa de aparecer mais?

Tenho reconhecido e já o tenho dito: vai ser necessário aparecer mais. Mas com substância, não aparecer por aparecer. Aparecer porque há matéria para aparecer. Surpreende-me os colegas que são membros ou titulares de órgãos que, às vezes, declaram publicamente que não foi feito nada, mas eles sabem que foi. São retóricas que a mim me dizem pouco, são retóricas mais eleitorais, que têm outras finalidades, e sou um bocado indiferente a isso.

Disse ter ficado espantado com o que encontrou quando aqui chegou. O que encontrou, exatamente?

Não costumamos falar, e eu pessoalmente, muito nisso. Mas poderia dizer que, acima de tudo, não tínhamos uma estrutura adequada e que respondesse às necessidades de uma estrutura destas, que tem 32 mil associados mais cerca de 3500 estagiários, e que movimenta um valor significativo. Além disso, é a ordem com o maior pendor político no país, por ter um enquadramento constitucional. A partir do momento em que esta é uma ordem que defende os direitos, liberdades e garantias e o próprio Estado de direito, de acordo com a lei, é evidente que tem uma responsabilidade política acrescida. É neste sentido que digo que a ordem não podia estar à margem de todos os procedimentos, tinha de estar era dentro deles. Acho que foi um trabalho imenso, acho que a História reconhecê-lo-á. Há muitos colegas que já o reconhecem.

Falou de um caso único do trabalho com a Assembleia da República, do trabalho com o Governo. Acha que, em determinado momento, essas ações podem ter–se virado contra si, ou seja, ter colado o seu bastonato mais ao poder e dado a sensação de que se afastava dos advogados?

Quando nos “ligamos” ao poder estamos a fazer um trabalho que é absolutamente central, que é influenciar o poder no sentido daquilo que são as preocupações dos advogados. Só que as preocupações dos advogados – e o cidadão, às vezes, não entende isso, e é pena – não são só a preocupação com eles próprios. O advogado tem uma preocupação com ele próprio, naturalmente, porque é um profissional e, como profissional, tem de trabalhar e ganhar. Mas o advogado também tem uma preocupação com o cliente, com o cidadão. Além disso, está ainda a defender o Estado de direito democrático. A ordem, no fundo, acaba por corporizar isto tudo. Tem preocupações com os advogados, com o Estado de direito democrático e com o cidadão. Esta “ligação” ao poder é uma ligação absolutamente central. Mas temos outros exemplos ao contrário que não conseguimos influenciar. É o caso das custas judiciais, que é uma batalha minha, deste conselho geral. Consideramos que as custas judiciais são manifestamente desadequadas e desproporcionadas em relação àquilo que são os rendimentos das pessoas e, portanto, afastam as pessoas da defesa dos seus direitos. 

Tem como metas para a sua recandidatura a defesa da advocacia como profissão liberal, a manutenção do modelo de apoio judiciário e a aposta no combate à procuradoria ilícita. Como trabalhou até hoje estes temas? Já me falou na questão das custas…

A primeira nota que julgo que é fundamental é que era preciso criar aquilo que poderíamos chamar vias de comunicação entre a ordem e o Governo, entre a ordem e o legislador da AR, e também entre aqueles que podem influenciar toda esta matéria. Foi isso que foi feito em primeiro lugar. Toda a lógica de trabalho do conselho geral foi para chegar a um patamar em que seja fácil trabalharmos com todos. Relativamente àquilo que tem a ver com a procuradoria ilícita, demos um toque diferenciado. A ordem sempre teve a preocupação do combate à procuradoria ilícita, mas foi preciso dar-lhe uma perspetiva diversa – nós chamamos-lhe o combate a favor do ato próprio. O combate à procuradoria ilícita é uma consequência do combate que fazemos na defesa da manutenção do ato próprio e até da extensão do ato próprio, porque ele é que é fundamental para a advocacia. Depois era preciso, no que dizia respeito ao ato próprio, apresentar um plano ao Governo, que também apresentámos. Haveria também que sensibilizar o cidadão para esta matéria. O cidadão não sabe o que é a procuradoria ilícita. Por isso lançámos uma campanha em maio que afastou o termo de procuradoria ilícita. A campanha ainda não acabou, vai continuar, nós temos já uma ideia bastante interessante para fazer com os média e, portanto, não quero adiantar muito sobre isso. A advocacia, como profissão liberal, passa primeiro por defendermos os atos próprios, pela apresentação de estatuto do advogado associado…

Falou agora numa campanha dos média. Há pouco tempo, a ordem reagiu publicamente à notícia das operações stop do fisco. É já reflexo de uma maior aposta na comunicação? Acha que isso aproxima a ordem das pessoas?

A pergunta tem duas coisas fundamentais. A primeira é se a campanha tem a ver com essa capacidade de maior comunicação. Claro que sim. E porquê? Porque, entretanto, a casa está arrumada. Já há aqui algum sossego. Quando nós podemos projetar um concurso internacional e não temos uma estrutura que nos ajude, está a ver aquilo que seria, e é, e foi uma completa inquietação, um desassossego para fazermos as coisas. Agora não, agora temos a estrutura montada, estamos sossegados, podemos dedicar-nos mais àquilo que é a ação política que a ordem tem de ter – ação política na defesa dos advogados, na defesa do Estado de direito democrático, dos direitos, liberdades e garantias do cidadão. É por isso que, mal se soube das operações stop, o comunicado estava cá fora. Porque nós já temos essa capacidade de oportunidade e, de facto, uma aliança entre a GNR e a AT é uma aliança que deixou toda a gente estupefacta, mas acima de tudo levantou um problema novo com que também temos de ter cuidado num Estado de direito. É que o cidadão diz assim: “Se a AT, juntamente com a GNR, está a fazer isto, então é porque é legal”. Porque acreditam, há aqui uma certeza, que o Estado de direito não vai fazer alguma coisa que não seja legal. Mas a verdade é que não era legal e, além disso, era uma intrusão naquilo que são os direitos, liberdades e garantias do cidadão. E a ordem tem a obrigação de reagir porque faz parte do seu estatuto e, por isso, era necessário fazê-lo. E ao fazê–lo também cumpria outro desiderato que é o cidadão sentir que a ordem está também do seu lado. Recebemos várias comunicações de cidadãos a agradecer. 

Não hesitou por poder parecer que era uma mudança eleitoralista?

Não me preocupa nada. Começámos no início com os bastonatos de proximidade, nem eu pensava sequer em recandidatar-me. Os bastonatos de proximidade tinham uma lógica absolutamente central naquilo que era a nossa preocupação: ouvir os colegas pessoalmente, ir aos tribunais e conhecer a realidade local, falar com as câmaras e com os presidentes da câmara. Fiz isso. Toda a gente achou bem. Quando se aproximou o ano das eleições, toda a gente veio dizer que o bastonato era um mecanismo já eleitoral. Portanto, não vale a pena. Há coisas que estão delineadas, previstas, e que nós não vamos deixar de fazer. A ordem não podia deixar de ter uma posição quanto a uma matéria tão importante como aquela aliança entre a GNR e a AT só porque estávamos no período eleitoral. Se houver críticas a esse nível, serão críticas que serão colocadas no espaço público, mas não afetarão o trabalho que estamos a desenvolver. Às vezes confunde-se aquilo que é trabalho pensado, organizado, com questões de campanha. Temos muito cuidado com isso. Não era nada complicado estar a partir de hoje nos média, bastaria falar naquilo que muita gente gostaria que eu falasse, mas não o faço porque, de facto, é preciso ter alguma contenção, por estilo e porque não estou a pensar em saltos para coisa nenhuma. 

O que acha que a ordem precisa de fazer para que a profissão passe a ser mais respeitada pela sociedade?

Esse é um tema que, às vezes, tem uma aculturação cinéfila à americana. Se fizermos a pergunta aos cidadãos em geral sobre o que pensam dos advogados, porventura alguns vêm dizer isto e aquilo do piorio. Porque veem muito cinema americano em casa e porque aí temos sempre uma má ideia do advogado, e depois porque há, como em todas as profissões, maus profissionais que, às vezes, prejudicam a imagem da classe. Por último, porque quando os tribunais não funcionam bem, contrariamente à saúde, não se culpam os Governos, culpa-se quem lá trabalha: os advogados, os juízes, o MP e os funcionários. Mas se perguntássemos concretamente isto ao cidadão, “olhe, o que pensa do seu advogado?”, a resposta que vai ter é, “esse não, esse é diferente, é muito bom, é honesto”. Há aqui respostas diferenciadas que têm muito a ver com a própria profissão. É uma profissão que se bate em tribunal por aquilo que é a compreensão do cliente sobre uma dada realidade, é uma profissão parcial. Se o advogado quiser ser imparcial vai para magistrado. Este conselho também fez uma coisa de que toda a gente falava antes, mas ninguém tinha feito: criou a comissão para a igualdade de género e contra a violência doméstica. Este conselho fê-lo já com protocolos com a Secretaria de Estado para a Igualdade de Género e já o fez concorrer com matérias que têm a ver com apoios europeus. Tudo isto também tem a ver com uma aproximação.

O que pode a ordem fazer para mostrar que está interessada em atuar de modo firme em casos de advogados que estão a ser investigados ou já foram condenados? Existem investigações e processos mediáticos como os que visam Proença de Carvalho e Duarte Lima? 

A primeira nota é sermos sempre claros. O princípio da presunção de inocência é absolutamente central, não só para os advogados como para todos. O problema do espaço público é que é um espaço, por natureza, de presunção de culpabilidade. A ordem tem a obrigação de defender os advogados no princípio da presunção da inocência, e isso tem um problema que é dizerem: “Pois, ora cá está a ordem a defender os seus”. A ordem defende os seus como defende qualquer cidadão dentro da presunção de inocência. Naturalmente que, se for culpado e condenado, aí, a ordem tem dois mecanismos: o procedimento disciplinar que pode levar à expulsão e o procedimento de ser declarado com inidoneidade para o exercício da profissão e, portanto, deixa de ser advogado. Esses são mecanismos em que a ordem tem atuado. Atua no âmbito dos conselhos de deontologia do conselho superior, isto é, através dos conselhos disciplinares. Vários provedores de Justiça já referiram que é, provavelmente, a ordem que mais atua no âmbito da disciplina. E, de facto, é verdade. A partir desses mecanismos conseguimos também criar a ideia ou imagem de que a ordem está atenta, mas não pode prescindir da presunção de inocência. E depois temos de ver que, muitas vezes, nem sequer há processo, há apenas o que se fala nas redes. Agora, quando a questão é concreta, naturalmente que temos de atuar, e atuamos. E isso tem acontecido relativamente a vários advogados, uns expulsos, outros com uma declaração de inidoneidade; portanto, isso sucede. Agora, as figuras mais mediáticas têm caraterísticas que são muito mais complexas, mas não é preciso ser um advogado, pode ser um político, pode ser quem for. 

Como assim?

Quando tal sucede, o que nós dizemos é que a justiça deve caminhar no sentido de, naturalmente, fazer a sua investigação. A nós compete-nos que a justiça cumpra as regras fundamentais que são os direitos de cada pessoa. Mas no caso das personalidades muito fortes no espaço público acresce outra caraterística, que é a opinião que toda a gente tem sobre qualquer pessoa. Essas opiniões são muitas vezes negativas e, aí, a ordem não pode estar a meter mais achas na fogueira, bem pelo contrário. Isto é muito complexo e merece ponderação porque, mesmo naqueles casos em que há condenação, se essas pessoas que foram condenadas, por exemplo, se candidatarem a um lugar político, como já se viu, ganham eleições. O cidadão vai à praça pública e atira as pedras, mata e esfola, mas, depois, esse cidadão vai preso, aparece numa qualquer atividade política, o que é que sucede? Ganha as eleições.

Estamos agora a falar de casos especiais, nomeadamente o de Isaltino Morais…

Não estou a falar de ninguém em especial. Repare como isto mostra como o cidadão tem aqui mecanismos de adesão e de condenação todos eles muito rápidos, todos eles não refletidos. A ordem não pode ter esses mecanismos; a ordem, se for chamada, tem de defender a presunção de inocência, defender o cumprimento dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, defender que o cidadão, cumprida a sua pena, tem a capacidade de ser um cidadão como qualquer outro e, por exemplo, de se candidatar. A ordem não se mete naquela coisa opinativa. 

Se houver suspeitas da prática de crimes por parte de um advogado, a partir de que momento é que a ordem pode abrir um processo de inquérito?

O inquérito e o processo disciplinar podem ser abertos a partir do momento em que entre cá uma participação, mesmo que haja a correr um processo-crime.

Mesmo que não haja condenação?

Mesmo que não haja condenação. Havendo condenação, até há outros caminhos, como já referi. Agora, se aparecer a participação aqui sobre algum facto, e temos muitas participações, agimos. Mas temos muita coisa que não faz sentido também.

Tem de ser por participação? Não pode ser por suspeitas que surjam…

Não, a ordem não investiga. Se nós partimos da presunção de inocência…

Não é investigar, estou a dizer é se tudo isso vem de participações ou se um processo de inquérito pode ser aberto com base em fortes suspeitas que são noticiadas?

Não. Tem de ser uma participação, pode ser feita é por alguém que tenha competências para isso. Mas à partida tem de haver uma participação de alguém que entrega na ordem, e depois é seguida no respetivo procedimento disciplinar. Por exemplo, já aconteceu eu ter feito uma participação, aliás, foi mesmo o pedido de instauração de um processo disciplinar relativamente a uma advogada. Mas porque aquilo que me apareceu era de tal maneira grave nos factos indiciários de que tive conhecimento, porque me foi apresentado, que entendi que o deveria fazer. Mas isso não é porque a opinião pública diz, não é porque a imprensa o refere, não basta isso, isso não é nada. Temos de ter é os factos, e aquilo que aparece na imprensa muitas vezes é canalizado por diversas razões, outras é alguém que está e deixa escapar outra coisa, e aí obriga a uma investigação própria. Mas se chegar uma participação relativamente a um advogado a dizer “este advogado ficou com o dinheiro não sei de quem”, abre-se logo o processo disciplinar.

Quanto a questões de advogados cujo caso transitou em julgado, e falei logo no início de Duarte Lima, o que pode fazer a ordem? Vi que a sua inscrição está inativa, mas poderá ser por várias razões, ou mesmo o não pagamento de quotas…

O não pagamento de quotas não leva à inscrição inativa.

Então será já uma consequência desse trânsito em julgado?

Não lhe sei dizer. Como sabe, os processos disciplinares têm natureza sigilosa e correm nos órgãos próprios. O bastonário não tem competência nesses órgãos. Não faço ideia do que se passa relativamente a esses processos. O que posso dizer é que os colegas que estão nos órgãos quer da deontologia, quer do conselho superior são colegas que trabalham imenso e fazem o melhor que podem nas condições que temos, e muitas vezes as pessoas fazem comparação com os tribunais, o que é uma comparação injusta. Porque quem está a julgar, tratar e trabalhar nos tribunais está a tempo inteiro, e aqui são advogados que continuam no seu escritório.

Em abstrato, quando aparece inativo no site da ordem é porquê?

Pode ser por muitas razões. Ou o próprio pediu inatividade, ou seja, pode pedir a suspensão da atividade ou o cancelamento da atividade; ou pode ter havido um processo disciplinar que deu origem a uma suspensão ou a uma expulsão. 

Como vê a hegemonia dos grandes escritórios de advogados?

Tem a ver com os tempos. Os grandes escritórios têm lógicas completamente diferentes da lógica de quem está como advogado em prática individual. Costumo dizer que estou à vontade porque fiz uma advocacia de prática individual, embora associado a outros colegas. A lógica dos grandes escritórios é a lógica de fazer uma atuação muito especializada mas com pluriespecializações. E há clientes que gostam disso. Não podemos proibir a existência de grandes sociedades, pequenas sociedades ou prática individual. Todos têm o seu espaço. Naturalmente que isso alterou aquilo que a podemos chamar a sociologia da profissão. Temos de ter consciência disso, e por isso é que nós apresentámos o estatuto do advogado associado, que nunca tinha sido apresentado. A proposta que fizemos para o advogado associado não foi minimamente rejeitada pelas grandes sociedades e, nesse aspeto, acho que cada um tem o seu espaço. O que é importante é que, seja em grandes sociedades, seja em prática individual, os advogados cumpram a ética deontológica, e é a ética deontológica que diferencia os bons dos maus. 

Nos últimos tempos tem-se assistido ao caso de um advogado, Pedro Pardal Henriques, que vai criando sindicatos em áreas-chave da economia, como a dos motoristas de transportes de matérias perigosas, conseguindo um impacto que os sindicatos ditos tradicionais não conseguem. Como vê esta situação?

Muito mal. Temos um problema em Portugal que deveria ser clarificado. Criar um sindicato é muito simples: faz-se uma escritura pública de cerca de três pessoas e está criado o sindicato. Aquilo vai para publicação no Boletim do Trabalho e do Emprego e já começa a funcionar. E mais, o Governo começa a achar que é um parceiro. Não é parceiro nenhum, até porque há questões que têm de ser vistas. O MP deveria atuar com maior velocidade, o que não faz, relativamente ao conteúdo dos estatutos dos sindicatos, isto é, saber se eles são legais ou não. Demora imenso tempo. Podia dar–lhe o exemplo de um caso que demorou um ano a apreciar, a ter alguma conclusão sobre o estatuto, que não cumpre regras fundamentais. Além disso, quem faz um sindicato tem de ser associado, tem de ser trabalhador subordinado, não pode ser um profissional liberal e tem de ser do respetivo setor. Aquilo a que nós temos assistido é a sindicatos que são construídos e têm direções de pessoas que não são trabalhadoras subordinadas e pessoas que não têm a ver com o setor. 

Portanto, fica preocupado.

Vejo com muita preocupação que no nosso Estado de direito democrático possam florescer sindicatos cujos dirigentes, muitas vezes, não são trabalhadores subordinados, não estão ligados ao setor enquanto trabalhadores, e que o MP não faça nada. Isso sim, isso preocupa-me. Acho que é uma preocupação que todos deveríamos ter. Há uma ausência de resposta do legislador na clarificação disso. Embora ache que a lei já tem lá tudo o que é preciso, é melhor clarificá-la, para que um qualquer peregrino, seja ele muito competente, pouco competente, sério ou não sério, possa juntar-se com uns amigos e fazer um sindicato. Mas, se o fizer, posso garantir que passado uns dias está a discutir com o Governo como se fosse um parceiro. Isto é absolutamente impensável. E depois, só muito depois é que há de ser verificada a legalidade do conteúdo do estatuto. Era preciso clarificar bem isso, era preciso que o MP atuasse rapidamente e era necessário que o legislador clarificasse quem pode constituir e ser constituinte num sindicato e quais são os pressupostos e requisitos para isso. E mais: quem pode ou não ser dirigente. Como é evidente, não podem ser profissionais liberais.

A criação de sindicatos por parte deste advogado pode abrir alguns outros precedentes?

Pode abrir precedentes graves que é a descaraterização dos sindicatos e, naturalmente, para quem é cinéfilo até faz lembrar aquele famoso filme Há Lodo no Cais, de Kazan. Isso é assustador.

O que pensa da proposta, considerada por muitos polémica, do PS para a alteração de estatutos do MP?

Para mim é fundamental que o MP continue a ser uma estrutura autónoma. Estou absolutamente consciente de que, se deixasse de ser uma estrutura autónoma, poderíamos ter problemas. O que importa é assegurar a sua autonomia face ao poder político mas, naturalmente, o poder político tem de ter capacidade para também determinar as grandes linhas de preocupação da política criminal. Não prejudica a autonomia do MP. Diria que às vezes há um ruído que não faz sentido, como aconteceu em tempos por causa da alteração do conselho superior – o PS já tinha comunicado que, afinal, não ia mexer em nada daquilo. E, por outro lado, essa matéria às vezes tem menos importância do que se pensa.

O diretor nacional da PJ disse nos últimos dias que é preciso haver coragem para debater instrumentos como a delação premiada em Portugal. Num próximo bastonato, o senhor terá coragem para participar num debate sobre a importância desse instrumento?

É preciso mais coragem para se dizer que não se está de acordo com a delação premiada, pelo menos no modelo que nós conhecemos, o brasileiro.

Mas, como sabe, há vários modelos, o alemão, o italiano…

Mas delação premiada no sentido que tem sido configurado, que é uma delação contratualizada… nós não damos para esse campeonato. Digo que é preciso ter coragem porque a onda é exatamente ao contrário. Dizer que estamos de acordo não era coragem nenhuma, na minha opinião. 

Então nem estaria aberto a debater…

Estaremos sempre de acordo com qualquer debate. Há uma coisa que para nós é importante e com a qual a ordem está preocupada, que é o combate à corrupção. Mas, vamos ver, a delação premiada, nos contornos que têm sido configurados, é contratualizar com alguém para que diga o que sabe, se é que sabe, dando-lhe uma retribuição, tenha ela a forma que tiver. 

Só é assim se a investigação conseguir comprovar essas declarações…

Aí é que há um problema. Como nós sabemos, não há grande investigação. E aí temos o exemplo do Brasil: como sabemos hoje, há muita delação premiada no Brasil, como nos Estados Unidos, que é completamente falsa. Há delação premiada que é ela própria organizada no sentido de se dizer “é preciso acabar com não sei quem, arranjamos aqui um que vá delatar”. E, a partir daí, há ali uma fação que é colocada fora, mas as outras continuam e o próprio também, simpaticamente. Ora, isso não pode ser.

Mas há algum modelo, por exemplo europeu, que lhe inspire mais confiança?

Não. Temos trabalhado na ordem nesse assunto e até temos uma proposta que poderemos vir a apresentar, mas que passa por aquilo que já existe, intensificando mecanismos que têm a atenuação da pena. Mas quanto à delação, no sentido que o cidadão também gosta de perceber, nunca estaremos favoráveis e não penso alterar a posição. Penso é que a ordem tem de estar ainda mais empenhada no combate à corrupção, desde que sejam garantidos os direitos, liberdades e garantias de cada cidadão. 

Quando decidiu recandidatar-se?

Julgo que foi em dezembro do ano passado. Não tinha a ideia de me candidatar, aliás, não estava mesmo em cima da mesa. Entendia que poderiam ser outras pessoas a candidatar-se, pessoas que não estavam disponíveis e que preferiam muito mais, segundo me disseram, que fosse eu a fazer o segundo mandato – e fechasse tudo isto que venho a fazer. Por outro lado, decidi avançar porque os candidatos que se configuravam não mereciam a minha confiança como advogado e eleitor e, nesse sentido, acabei por entender que deveria avançar.

Ou seja, se não for bastonário não vai confiar no bastonato seguinte?

Não, não confio naquilo que é o potencial. Como sabe, há bons candidatos e bons bastonários, e pode haver as duas coisas ou não haver. O que entendo é que os candidatos que se configuram não merecem a confiança no sentido de virem a fazer um bom bastonato, mas eles provavelmente pensarão o mesmo de mim. Isso é normal em democracia e é rico para a ordem ter vários candidatos, tem a ver com a pluralidade de pensamento. É preciso é que a retórica eleitoral seja elevada, e nem sempre o é. O que importa é discutir argumentos e não criar notícias falsas, não escrever bagatelas, não inventar, não ir àquilo que é a pessoa em si mesmo, porque isso não está em discussão, o que está em discussão são ideias e argumentos. Espero que o debate entre os candidatos seja a partir dos argumentos, das propostas, e que esse seja o foco da discussão.