Não posso bailar na roda,
deixá-lo pouco importa;
quero andar a noite toda
à roda da tua porta
ai-ló! ai-ló! ai-ló
ai-ló é coisa boa
a gente é que ganha o prémio
do “Diário de Lisboa”
Foi com estas quadras que Campo de Ourique, com uma marcha organizada pela Academia Filarmónica Verdi, conquistou o “1º prémio de imponência” no primeiro concurso de marchas populares em Lisboa. Corria o ano de 1932, os versos não eram de poetas, nem as músicas de compositores célebres. Também não houve padrinhos conhecidos, mas a vontade bairrista de ganhar já lá estava e a adesão superou as expectativas, lembram os jornais da época.
A iniciativa partiu do diretor do Parque Mayer, casa de espetáculos no centro da vida lisboeta. Os Santos Populares já eram festejados nas ruas da cidade e havia a memória das “velhas marchas populares” de cada bairro, chamadas também de ranchadas, que se encontravam junto ao chafariz da rua Formosa, hoje rua do Século, lembra o ensaiador José Ramalho, num texto guardado no arquivo do Gabinete de Estudos Olisiponenses da Câmara Municipal de Lisboa. Campos Figueira pensou em revitalizar a tradição com um “espetáculo inédito”, com direito a palco e prémios, e criou a competição que, mesmo com alguns anos de menor entusiasmo, durou até aos dias de hoje.
A primeira edição foi promovida pela revista “Notícias Ilustrado”, com o envolvimento do diretor Leitão de Barros”, e pelo “Diário de Lisboa”. Os “ranchos” de cada bairro, afinal a tradição inspirava-se no folclore regional, receberam um subsídio para ajudar nas despesas. “Já se sentia em Lisboa que algo de novo ia a acontecer na noite de 12 de junho”, recorda José Ramalho. “Sucede que alguns dias antes da data marcada para a exibição, só três ranchos estavam em condições de se apresentarem em público para o anunciado concurso.”
Alto do Pina, Campo de Ourique e Bairro Alto disputariam o primeiro concurso e o Parque Mayer revelou-se pequeno para tanta euforia.
Aos moradores dos bairros que acompanharam as marchas até ao auditório juntaram-se os curiosos. “A multidão era tanta que as forças da PSP e da GNR a cavalo dificilmente continham esse mar de gente, que ia aplaudindo os ranchos conforme chegavam. E já dentro do Parque, eram dez horas da noite, os componentes não marchavam, deslizavam perante aquela massa humano em delírio”, descreve José Ramalho.
O “Notícias Ilustrado” publica imagens do “êxito popular” e o “Diário de Lisboa” deixa mais algumas notas, bem ao estilo da época. “A menina Natália Moura, com o seu par, num grupo de raparigas da marcha de Campo de Ourique, que ontem nos descantes e nos bailados provocou a atenção do público pela sua formosura e pelo seu donaire, mantendo as tradições da alegria do povo, no qual se encontram verdadeiros exemplares de beleza física”, lê-se numa legenda da edição de 13 de junho de 1932.
“Só quem assistiu no Parque e nas ruas a esse espetáculo impressionante de beleza popular – e foram dezenas de milhar de pessoas – pode bem avaliar do interesse público, da graça, da alegria, da originalidade, do pitoresco simpático e da bizarria que distinguiram a realização da iniciativa que o nosso jornal patrocinou”, relata o vespertino, concordando com o apelo feito no “Diário de Notícias” nesse mesmo dia: “Lançaram-se os fundamentos para uma grande festa anual, tipicamente portuguesa e popular, a organizar com extensão e superior critério, e que a Câmara Municipal devia tomar a si.”
Ainda antes de se pensar na edição seguinte, a vontade de concorrer dos bairros que tinham ficado de fora leva a que se faça uma segunda ronda de marchas ainda durante o mês de junho, com o 1º prémio entregue à Madragoa. Tal como na primeira ronda, o prémio é de um conto de reis. E as marchas seriam ainda convidadas a desfilar no Parque Estoril.
No texto que recolhe informação sobre a primeira edição, José Ramalho lembra que, logo em 1932, a Câmara Municipal de Lisboa mostrou interesse em patrocinar a iniciativa, o que veio a acontecer dois anos depois, com as marchas incluídas pela primeira vez no programa das festas de Lisboa pela mão de Luís Pastor de Macedo, vereador da cultura.
O “Diário de Lisboa” de 11 de junho de 1934 revela uma aposta certeira: cerca de 300 mil pessoas encheram Terreiro do Paço, rua Augusta, Rossio, Avenida e Parque Eduardo VII para ver passar as comitivas dos bairros, num cortejo marcado para a noite de domingo. Lisboetas, sim, mas também forasteiros, “espanhóis que vieram em autocarros e estrangeiros de várias nacionalidades, instalados no Estoril, ou de passagem, todos de acordo quanto à beleza incomparável do espectáculo de ontem”.
O movimento era inédito. “Os táxis nunca fizeram tão bom negócio. Os elétricos, sempre apinhados, funcionaram dia e noite, sem descansar. Houve condutores que trabalharam 20 horas seguidas, pois foram forçados a prosseguir o seu posto, às 2 horas da madrugada, quando os carros deviam recolher aos hangares. Os elevadores, que também tiveram grande concorrência, funcionaram até às 3 horas de hoje. Na calçada da Glória, o cabo condutor de energia elétrica ainda estava quente esta manhã”.
O concurso das marchas seria nessa noite, no Parque Eduardo VII, com 12 bairros em concurso (Bairro Alto, Ajuda, Alto do Pina, Alfama, Campo de Ourique, Sete Rios, Santo Amaro, Madragoa, S. Vicente, Benfica, Alcântara e Mouraria). Depois do desfile, conta na edição do dia seguinte o mesmo jornal, o júri reuniu-se pelas 3 horas da madrugada para pontuar as exibições e a vencedora foi Alfama, sem margem para dúvidas. “Obtivera o máximo dos pontos em todos os os boletins e em todas as considerações dos nove componentes do júri, sem exceção, de tal modo que nem discussão ou revisão foi preciso fazer.”
A Grande Marcha de Lisboa
Depois do êxito retumbante, a autarquia não hesita em repetir a dose no ano seguinte. Com uma novidade: além das suas cantigas, haveria uma canção comum a todos os grupos. Surge assim a ideia de uma “Grande Marcha de Lisboa”, neste ano com música original do maestro Raul Ferrão e versos de Norberto de Araújo. No Gabinete de Estudos Olisiponenses é possível consultar o programa original, com as letras de cada antiga, incluindo os refrões que ainda hoje vêm à memória sempre que há marchas, mas com uma pequena diferença face aos que fizeram história: em vez de “Lá vai Lisboa”, o original seria “Ai! Vai Lisboa”. Os versos são conhecidos: “Ai! Vai Lisboa! Com a saia cor do mar/ e cada bairro é um noivo/ que com ela vai casar./ Ai! Vai Lisboa!/ Com seu arquinho e balão / Com cantinguinhas na boca / e Amor no coração.”
Na hora de atribuir prémios, já se revelou um bico de obra: com pontuações muito aproximadas, o júri optou por criar dois grupos: Alfama, Madragoa, Benfica, Graça e Campolide foram as primeiras classificadas e Alcântara, Mouraria, S. Vicente, Chelas, Ajuda e Santa Clara ficaram com o segundo lugar.
Há outra curiosidade nesta edição de 1935: ainda longe de ser conhecida, Amália Rodrigues, com 14 anos, estreia-se como solista pela Marcha de Alcântara. Viria a ser madrinha do coletivo na década de 50 e uma das maiores entusiastas da tradição, além de dar voz a mais de 20 temas. “Gosto tanto das marchas como do fado”, diria em 1969 à Flama, quando, ao regressar de uma atuação na União Soviética, lhe pedem para comentar a ausência de Alfama do desfile daquele ano. “Deve ser engano!”, exclamou.
Seriam muitas as histórias e disputas ao longo do tempo em torno dos desfiles, que passariam pelo Pavilhão dos Desportos e começam a descer a Avenida da Liberdade em 1952. A festa regressa esta noite, este ano com uma grande marcha da autoria de Augusto Madureira, “Lisboa, Alegre e Triste”.