1. Foi a estrela das cerimónias oficiais do 10 de Junho deste ano: o populismo está cada vez mais na moda em Portugal. Nós temos alertado, em sucessivas ocasiões e em diferentes eventos, para a confusão que o discurso mediático (e alguma autodeclarada intelectualidade) promove em torno do conceito de populismo. Às tantas, parece que ser populista equivale a ser criminoso, terrorista ou que esta palavra comporta, em si mesma, uma ideia pecaminosa ou contrária ao sistema democrático. O populismo mais não é do que uma forma de aceder ao poder e de o exercer – é processo, e não programa de ação política. O que significa, portanto, que múltiplas e bem heterogéneas realidades poderão ser abarcadas no conceito de populismo: há populismo democrático como há populismo antidemocrático. Há populismo que é basista – ou seja, que apela à participação das massas na tomada de decisões, promovendo a prevalência absoluta das emoções sobre a razão –, assim como há populismo que é elitista, fazendo a apologia da liderança política por uma vanguarda revolucionária, alegadamente dotada de especiais capacidades de liderança, de personificar e antever a “vontade da nação”.
2. Estas duas formas extremas e extremistas de populismo tendem a corporizar alternativas políticas marcadas pelo totalitarismo e pelo autoritarismo. No entanto, é cogitável uma plêiade de versões moderadas de populismo que, nos tempos coevos, têm como denominador comum a repulsa da corrupção e das desigualdades brutais, resultantes de um establishment político que tende a eternizar-se (incólume!) no poder. O Presidente Donald Trump costuma repetir uma frase aos seus mais próximos conselheiros políticos que é genial: “Não sou populista, mas sim popularista (popularist). Ora, o popularismo traduz-se, no fundo, na modelação do exercício do poder político à medida do espírito dos Founding Fathers dos EUA – o poder pertence ao povo, à vontade popular que se projeta e se adequa às instituições previstas na Constituição, e não a uma aristocracia, seja ela qual for. Ora, a verdade é que Portugal reúne todas as condições para que um projeto político mobilizador, dinâmico, que imprima esperança aos portugueses num futuro melhor, sem cuidar de apurar responsabilidades pelo passado (recente) tenebroso e pelo presente doloroso, doa a quem doer, genuinamente do povo, para o povo e pelo povo, se afirme. Desde os esquecimentos seletivos da elite “brilhante” que mandou (ainda manda?) neste país na última década, até aos serviços públicos depauperados por um Governo que se diz de esquerda e defensor da justiça social – Portugal é um cadinho perfeito para a vitória de um reformista e genuíno movimento populista. E o populismo está chegando ao nosso país.
3. O populismo já chegou ao nosso país. Chegou em força, hoje, dia 10 de Junho de 2019, em que se assinala mais um Dia de Portugal, tendo a sua manifestação mais lídima nos dois discursos das cerimónias oficiais, proferidos pelo Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, e por aquele que é considerado o jornalista mais cool da direita, João Miguel Tavares. Confessamos que temos sentimentos ambíguos quanto a João Miguel Tavares: o cronista do jornal mais à esquerda do regime foi, durante muito tempo, o cronista mais criativo, arrojado e politicamente incorreto entre nós. Até ao momento em que percebeu as vantagens de ter a bênção da esquerda: nesse momento, João Miguel Tavares até se prestou ao papel (um pouco ridículo, devemos acrescentar) de levar os seus filhos ao gabinete de António Costa, intervindo num gesto de pura propaganda política rasca do líder socialista. Enfim, João Miguel Tavares percebeu que, para manter o seu estatuto de colunista destacado, teria de pedir o certificado de aprovação da esquerda – pediu e foi-lhe outorgado. É o problema da direita em Portugal: os seus protagonistas – no poder formal ou no poder mediático – preocupam-se mais em obter o certificado de aprovação da esquerda do que em lutar pelos ideais em que acreditam. Preocupam-se mais em afirmar aquilo que a esquerda quer ouvir do que explicar e lutar por aquilo em que verdadeiramente acreditam. E os portugueses (não fanáticos politicamente) não são estúpidos: não se deixam enganar por encenações – preferem a abstenção, o voto branco ou nulo…
4. Dito isto, o discurso de João Miguel Tavares, ontem, foi francamente bom. Certeiro no diagnóstico, desassombrado na receita possível. Suficientemente contido para não ser institucionalmente inapropriado; e suficientemente arrojado para não ser classicamente repetitivo. Um discurso de equilíbrio que se destacou face à monotonia que usualmente marca este tipo de cerimónias. Quanto ao conteúdo, foi um discurso maravilhosamente populista: primeiro, ao distinguir entre os “privilegiados do sistema” e o resto da população que é esquecida; segundo, ao fazer a apologia dos diferentes tipos de currículo e da não valorização natural de qualquer um deles face a outro, exaltando-se o “senso comum” como valor cívico e político; terceiro, assinalando a premência da luta contra a corrupção; quarto, ao apelar aos homens e mulheres esquecidos deste país, designadamente aqueles que vivem no interior de Portugal. Ao ouvir o discurso de João Miguel Tavares recordámos imediatamente o discurso do Presidente Donald Trump na convenção republicana – o Presidente dos EUA e Stephen Miller (um dos seus conselheiros políticos) aprovariam, de imediato, este discurso do colega de Ricardo Araújo Pereira no Governo Sombra. Está lá tudo: o combate ao sistema corrupto; a promessa de que “os homens e mulheres esquecidos não o serão mais” (“the forgotten people will be forgotten no longer”); a valorização do common sense, do conhecimento de experiência feito, o empirismo como valor cívico, na tradição política anglo-americana.
5. O que é curioso é ver, depois, João Miguel Tavares a criticar o Presidente dos EUA e os populismos nas suas intervenções televisivas, com uma dureza inaudita: ele que, pela primeira vez em cerimónias oficiais, proferiu um discurso claramente populista, em linha com as tendências políticas mais consistentes do tempo histórico em que vivemos. O 10 de Junho de 2019 provou que, afinal, o populismo democrático está mesmo chegando a Portugal. E será imparável. A hora chegou – é tempo de o povo português recuperar a sua soberania.
P.S. A orfandade da direita é tão grande que já se apela a uma candidatura de João Miguel Tavares à liderança do PPD/PSD: hoje, qualquer discurso que exceda a banalidade é suficiente para tornar o seu protagonista apto a liderar o centro-direita…
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Escreve à terça-feira