Agustina. A deusa incontestada das letras portuguesas

Agustina. A deusa incontestada das letras portuguesas


Personalidade peculiar e indecifrável, Agustina foi elevada pelos seus pares ao estatuto de “génio” e de “deusa”. Nunca teve dúvidas do seu talento, mas também enfrentou a crítica, sobretudo no início.


O seu lugar de eleição para trabalhar era uma poltrona, com uma mesa redonda ao lado para pousar livros e jornais, numa sala de sua casa que dava para um pátio, que por sua vez tinha vista para o Douro. Enquanto passava os pensamentos para o papel – como recordou a filha, Mónica Baldaque, na sessão de apresentação de Ensaios e Artigos (1951-2007) na Fundação Calouste Gulbenkian – sustinha a respiração, como se até um pequeno sopro pudesse perturbar o resultado.

Agustina Bessa-Luís escrevia sempre à mão, numa caligrafia miudinha e apertada, com uma caneta de tinta azul. As palavras sucediam-se sem desvios e sem hesitações, preenchendo o espaço da folha branca de forma regular, como se tivessem por baixo linhas invisíveis para as orientar.

Depois era o marido, Alberto Luís, quem batia os textos à máquina, corrigindo aqui ou ali alguma incongruência. “Quando o manuscrito era passado à máquina os dois tinham grandes conversas, porque sendo o meu avô uma pessoa do Direito poderia haver uma ou outra coisa que não lhe fazia sentido na história, e aí havia grandes discussões”, recordou a neta da escritora, Lourença Baldaque, numa entrevista ao SOL em 2017. “Às vezes a minha avó cortava a discussão e não queria saber”.

Agustina e Alberto Luís formavam um “casal intelectual”, que partilhava a paixão pelos livros, pelas conversas e pela troca de ideias. Mesmo para alguém com um feitio peculiar, não deixa de ser surpreendente a forma como Agustina conheceu o marido. Ela colocou um anúncio n’O Primeiro de Janeiro: “Jovem instruída procura correspondência com pessoa inteligente e culta”. Ele respondeu ao chamamento e assim iniciaram uma relação que resultou em casamento, em 1945, e que durou até ao fim da vida de Alberto, em 2017, aos 94 anos.

“Não tenho a cara de uma intelectual” Nascida a 15 de outubro de 1922 em Vila Meã, Amarante, aos dez anos Agustina foi estudar para o Porto. A infância e juventude foram repartidas por várias localidades do Norte.

Agustina sempre esteve, no entender da neta, “convencida do seu talento”. Ainda antes de se fixar no Porto em 1950, publicou o seu primeiro romance, Mundo Fechado, em 1948. Seguiu-se-lhe Os Super-Homens, em 1950, que desencadeou uma polémica com o crítico Jaime Brasil. Acerca dele, escreveu Aquilino Ribeiro: “Livro magnífico. Magnífico de observação, portanto de análise, igualmente de estilo”. Começava a ganhar forma a lenda de Agustina.

A confirmação como “a grande senhora das letras portuguesas” (epíteto que lhe foi dado por Eduardo Lourenço) chegaria com A Sibila, de 1954, um romance passado nas proximidades de Amarante, numa espécie de regresso às raízes. Aí surgiam alguns dos temas centrais da sua obra: o significado e memória dos lugares, a dignidade do mundo rural, a superioridade natural da mulher, a história da família. Ao mesmo tempo, começava assim a cultivar o mito da sibila, uma sacerdotisa cujas palavras misteriosas nem sempre podiam ser inteiramente compreendidas. Como escreveu Eduardo Prado Coelho: “Aceitar que muitas vezes o que diz não é para entender por inteiro é uma das imensas qualidades de Agustina”.

Mas Agustina sabia combinar, de forma desconcertante, as frases enigmáticas com as observações mais terra-a-terra. No seu Dicionário Imperfeito (ed. Guimarães, Opera Omnia, 2008), recordou o seguinte episódio que se passara no mercado: “Uma vez, estando na praça do peixe, o peixeiro, que era uma pessoa muito viva – e eu sou péssima para contas, fui sempre, o que me inferiorizava mais era dizerem-me que a matemática é a ciência que está mais perto de Deus, e eu sentia-me a uma distância dele que me vexava imenso… – Mas, como ia dizendo, perguntei quanto era, ele disse: ‘É tanto’, e eu estava, enfim, a fazer as contas muito lentamente, e ele pegou numa lousa e perguntou: ‘Sabe ler?’ Mas não o disse por malícia nem por agressão. Aquilo saiu-lhe naturalmente. Fiquei feliz, ao concluir que não tenho realmente a cara de uma intelectual. Sou uma pessoa tão comum, que até se lhe pode fazer esta pergunta”.

Leitora voraz, mulher imensamente inteligente e culta – chegou a dizer, numa entrevista, que lia facilmente cem páginas por dia – não se esquivava ao contacto com as pessoas simples. Lourença Baldaque recordou, na entrevista ao SOL, algumas visitas que fez a Lisboa com a avó. “Praticamente toda a gente – isto não é exagero – a cumprimentava em andamento. ‘Boa tarde, dona Agustina’, uma coisa incrível. No Porto acho que não acontecia tanto, o portuense é mais reservado”. Os contactos não aconteciam apenas no restaurante ou na sapataria – apesar do seu estatuto de intelectual, Agustina também nutria interesse pelos bens materiais que seduzem os outros humanos. “Era como se fosse uma estrela rock que andava aí na rua e toda a gente – às vezes as pessoas paravam e comentavam qualquer coisa – era muito abordada aqui em Lisboa”.

Um monumento de antipatias Outra das características que cultivava era a ironia fina com que visava os seus pares, e que lhe granjeou muitos inimigos. “Há em Agustina um uso generoso da maldade”, escreveu Prado Coelho num número especial que a Egoísta dedicou à escritora em 2007. A própria reconhecia: “Construí com os ossos da profissão um monumento de antipatias”. Olhava com alguma desconfiança, de resto, para o meio dos críticos literários – “entendia que não eram muito autónomos, não perdiam muito tempo a refletir nas coisas, a pensar”, recordava a neta.

Um dos períodos em que esteve mais exposta à crítica foi enquanto dirigiu o Teatro Nacional D. Maria II, de 1990 a 1993. Ter colocado uma peça de revista, Passa por mim no Rossio, no principal palco português não foi visto com bons olhos por muita gente. Segundo a sua neta, “foi arrojado, mas a verdade é que as contas estavam muito mal e ajudou a pô-las em ordem”.

Mas foi na literatura que deixou a sua marca. “Se há em Portugal um escritor que participe da natureza do génio, é Agustina Bessa-Luís”, escreveu José Saramago. Frederico Lourenço, na Egoísta, dizia taxativamente: “No meio onde cresci, Agustina era, na prosa portuguesa do século XX, a deusa única e incontestada”. Esse estatuto seria confirmado pela atribuição do Prémio Camões em 2004.

Para a história fica também a sua ligação ao cinema de Manoel de Oliveira. Ambos figuras da aristocracia intelectual portuense, mantiveram uma longa amizade que resultou também em colaborações criativas. Vale Abraão (1993), a obra-prima de Oliveira, baseia-se no romance homónimo de Agustina, escrito a pedido do realizador. E parte das filmagens foi feita numa quinta da família de Agustina no Douro.

Passado num casarão onde avultava uma cópia da célebre pintura de Rembrandt, o seu último romance, A Ronda da Noite, tinha também muito de cinematográfico. Foi publicado em 2006. No ano seguinte, a escritora sofria um AVC que a deixaria diminuída, e depois um segundo. Ainda assim, recuperou as faculdades e, nos últimos anos, andava e saía de casa. “O único problema que ela tem, e nem é constante, é a fala”, revelou a filha, Mónica Baldaque, numa entrevista ao SOL em março deste ano.

Agustina morreu esta segunda-feira, na sua casa do Porto, aos 96 anos. Mas decifrar o enigma da sua escrita – como o da sua personalidade – é um processo que nunca termina.