O problema não é de agora, muito pelo contrário. Há anos que tanto por parte dos profissionais do setor como do público do Cinema São Jorge, em Lisboa, se acumulam queixas sobre a falta de condições para e exibição de filmes, sobretudo na sua maior sala, batizada com o nome de Manoel de Oliveira. Um dos casos recentes de maior gravidade deu-se na abertura da edição de 2018 do IndieLisboa, durante a projeção do filme "A Árvore", de André Gil Mata, que, depois de ter estreado no Festival de Cinema de Berlim, teve a sua primeira exibição em Portugal com uma projeção imperceptível ao ponto de, em algumas das cenas, não ser possível identificar sequer o protagonista. Trata-se de um filme rodado inteiramente à noite, durante o inverno, na Bósnia, e quase sem diálogos.
Ao fim de vários anos de queixas – e de pedidos de vários realizadores às direções dos festivais de cinema acolhidos por aquela sala para que, se possível, os seus filmes sejam exibidos noutras, como a Culturgest, da Fundação Caixa Geral de Depósitos, que não aquela – a EGEAC, empresa municipal responsável pela gestão dos equipamentos culturais da Câmara de Lisboa procedeu, em outubro do ano passado, à substituição do projetor por um equipamento de “última geração”.
O problema é que a substituição do projetor parece não ter sido suficiente para resolver os problemas de projeção. Nalgumas das sessões da edição do IndieLisboa que terminou no último domingo voltou a haver problemas relacionados com a imagem.
Por exemplo, na projeção de "Grbavica", uma curta-metragem a preto e branco de Manuel Raga Raga, as extremidades da tela tinham uma coloração avermelhada. Problema que, segundo André Gil Mata, diretor de fotografia desse filme, não se verificou na sessão seguinte, quando, com um projetor de qualidade inferior, o mesmo filme foi exibido na Sala 3 do mesmo cinema. “Como no ano passado "A Árvore" teve muitos problemas, pediram-me, quando instalaram o novo projetor, para ir lá com o filme, para testar. Quando o vi nesse momento de testes realmente em termos de imagem vi-o como ele é”, recorda ao i André Gil Mata. “A questão é que no mundo digital estes aparelhos têm de estar sempre a ser calibrados. E agora [com Grbavica], o projetor não estava novamente calibrado.”
Não foi a única sessão do IndieLisboa em que um filme não foi mostrado nas melhores condições. “É uma tristeza tão profunda que acabamos por ficar a pensar se realmente vale a pena continuar nisto. Porque não me parece que haja condições. São raras as vezes em que se consegue mostrar um filme em condições”, lamenta o realizador. “Seria o mesmo que uma pessoa ir ao Louvre de propósito para ver uma pintura e chegar lá e ter as luzes apagadas.”
Perante a repetição dos problemas técnicos (e das queixas), no último domingo, o dia em que terminava mais uma edição do IndieLisboa, a Associação Portuguesa de Realizadores (APR) deu início a um processo de recolha de assinaturas para uma carta aberta à direção da EGEAC com um “basta” à falta de condições para a exibição de filmes da Sala Manoel de Oliveira do Cinema São Jorge. “Há anos que o setor é unânime nas queixas. Desde diretores de festivais a críticos, realizadores e produtores”, sublinha Filipa Reis, presidente da APR. “Ninguém quer mostrar os seus filmes no São Jorge, porque os problemas são contínuos”.
A carta aberta da APR à EGEAC na íntegra
Um investimento de quase meio milhão
“Um cinema não é apenas uma sala com lugares sentados”, lê-se na carta, divulgada na página do Facebook da associação que representa um número considerável de realizadores portugueses e que ontem tinha já sido subscrita também pelas direções tanto do Indie como do Doclisboa, os dois maiores festivais de cinema que decorrem anualmente em Lisboa entre o São Jorge e a Culturgest, pela PCIA (Produtores de Cinema Independentes), pelo CENA-STE (Sindicato dos Trabalhadores de Espectáculos, do Audiovisual e dos Músicos).
Isto porque, apesar de o projetor ter sido de facto substituído, continuou a haver problemas na imagem em várias sessões. Ao que o i conseguiu apurar, agora relacionados não com a obsolescência do equipamento, mas com questões de calibragem a que os técnicos do cinema gerido pela EGEAC não foram capazes de dar resposta. Segundo Miguel Valverde, da direção do IndieLisboa, ainda durante o festival, e antes de a carta ter sido posta em circulação pela APR, os problemas foram comunicados à EGEAC, que se mostrou disponível para procurar resolvê-los assim que possível. “Já não se trata de um problema do projetor em si, porque o projetor foi substituído. Nesse ponto, trata-se só de uma questão de investir um pouco mais de dinheiro para resolver o problema da calibragem. O que realmente nos preocupa neste momento – e por isso subscrevemos a carta – é o problema do som.” Esse continua por resolver. “Sabemos que a EGEAC está a procurar resolvê-lo, que já foi encomendado um estudo, e que as alterações são bastante dispensiosas. Mas era importante que as obras tivessem início ainda neste verão, porque a partir de setembro os festivais regressam ao São Jorge.”
E são inúmeros. Para lá do IndieLisboa, na primavera, e do Doclisboa, que decorre anualmente em outubro, à semelhança do primeiro sobretudo entre o Cinema São Jorge e a Culturgest, a histórica sala de cinema da Av. da Liberdade recebe um sem número de outros festivais: no início de setembro, o MOTELX – Festival Internacional de Cinema de Terror de Lisboa e logo depois disso o Queer Lisboa, bem como a Festa do Cinema Italiano e uma série de outros festivais que ao longo do ano vão tendo lugar na capital.
Resolver o problema do som implicará um investimento bem maior do que aquele que foi feito para a aquisição do projetor que a empresa municipal que gere o São Jorge garante ser “de última geração”. Questionada pelo i, a EGEAC, que garante que “desde que assumiu a tutela do Cinema São Jorge, tem feito um investimento continuado na manutenção do espaço e na melhoria das condições técnicas do mesmo”, revelou que o projetor adquirido no outono passado e substituído durante a última edição do Doclisboa, teve um custo de 75 mil euros.
Já o investimento necessário para resolver os problemas de som da sala rondarão os 350 mil euros. “Trata-se de um investimento de monta que a EGEAC entende ser absolutamente necessário para melhorar as condições do equipamento sonoro da Sala Manoel de Oliveira e que gostaria de ver resolvido o mais rapidamente possível. Contudo, a realização de um concurso internacional a que este procedimento obriga, torna o processo mais complexo e moroso do que o habitual.”
A carta aberta da APR não foi ainda enviada à direção da EGEAC – está a decorrer o processo de recolha de assinaturas – mas, depois de ter tido conhecimento de que a carta circulava nas redes sociais, a presidente do conselho de administração da empresa que gere o cinema prestes a completar 70 anos, mostrou-se, numa carta dirigida à APR, disponível para se reunir com a associação.
Nessa mesma carta, que partilhou com o i, a EGEAC sublinha que, desde a substituição do projetor da Sala Manoel de Oliveira que “o retorno tem sido largamente positivo com exceção da última programação do IndieLisboa”, festival junto do qual já manifestou “estar disponível para trabalhar detalhes e resolver qualquer falha técnica que possa ter surgido com a empresa vendedora, procurando assim dar resposta aos anseios de autores e realizadores, sendo certo que a equipa do Cinema São Jorge é sempre a primeira a disponibilizar-se para trabalhar com estes em fase de testes de festivais”.