José Sócrates tinha o esquema de circulação de dinheiro montado à semelhança de uma organização clandestina, dividida por células: o cabecilha nunca entra em contacto com os operacionais, dando apenas ordens e funcionando através de intermediários. Alguns testemunhos de pessoas ligadas à Operação Marquês podem parecer contraditórios, mas não são – o testemunho de Domingos Farinho, ouvido ontem no Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC), serviu para o juiz Ivo Rosa esclarecer algumas dúvidas em relação à forma como este esquema funcionava.
Durante a instrução da Operação Marquês, Rui Mão de Ferro, o homem que o Ministério Público acredita ser o testa de ferro de Carlos Santos Silva, garantiu que não conhecia o antigo primeiro-ministro e que quem lhe pediu para fazer o contrato com Domingos Farinho, o alegado autor-fantasma do livro de José Sócrates, foi o próprio Santos Silva. Em causa, explicou, estava uma prestação de serviços jurídicos.
Ontem, Domingos Farinho, o homem que o Ministério Público suspeita ser o verdadeiro autor da tese de mestrado de Sócrates e o autor do livro A Confiança no Mundo, não quis prestar declarações perante o juiz, para não abordar questões em relação à qual pudesse resultar a sua auto incriminação num outro inquérito entretanto aberto sobre o caso. Mas Ivo Rosa precisava de esclarecer apenas um ponto: como é que o professor universitário tinha conhecido o empresário da esfera de Santos Silva?
Esta questão em nada iria interferir no desenrolar do outro processo, filho da Operação Marquês – quando foi ouvido pelo Ministério Público, Farinho acabou por se incriminar, dizendo que trabalhava para Sócrates e que recebia uma avença. “[Havia] a hipótese de ir para dedicação exclusiva na Faculdade, só que se assim fosse não poderia garantir a reserva do contrato que me tinha sido pedido. Sugeri [a José Sócrates], em acordo com a minha mulher, que, enquanto estivessem naquele período de disponibilidade, o pagamento fosse feito em nome dela”, afirmou na altura. Esta versão foi corroborada por Jane Kirby, que admitiu que a manobra serviu também para ocultar a ligação entre o professor e o socialista: “Arranjámos esta solução para ele [Farinho] não ter que revelar esta relação confidencial”. O MP acredita que, por estes serviços, Farinho terá recebido 95 mil euros.
Perdido por 100, perdido por 1000, Farinho decidiu ontem falar: disse que não sabia se Rui Mão de Ferro conhecia ou não José Sócrates, que nunca falaram sobre esse assunto. Foi-lhe apenas passado o contacto do empresário, com quem esteve duas vezes, para assinar os contratos de avença.
À saída do tribunal, Domingos Farinho não quis prestar declarações. O seu advogado, Soares da Veiga, confirmou apenas que irá representar o professor de direito no outro processo em que Farinho é arguido. Trata-se de uma certidão extraída da Operação Marquês, na qual o docente universitário é acusado de falsificação de documento. Em causa está o alegado contrato fictício estabelecido com a RMF, empresa de Mão de Ferro.
Bloguer tem a mesma versão de Farinho Também António Peixoto, o bloguer que escrevia sob o pseudónimo Miguel Abrantes na página Câmara Corporativa com o objetivo de veicular informações favoráveis ao Governo de José Sócrates, foi ouvido ontem por Ivo Rosa, juntamente com o seu filho, António Mega Peixoto. Ambos deram uma versão idêntica.
Ivo Rosa também perguntou ao bloguer e ao seu filho como tinham conhecido Rui Mão de Ferro, o homem responsável pelos contratos de avença, e a resposta foi semelhante à de Domingos Farinho: receberam o contacto e nunca trocaram uma palavra sobre a relação com José Sócrates.
O blogue de António Peixoto nasceu em 2005 e o seu autor era pago por Rui Mão de Ferro. Entre 2005 e 2015, Peixoto recebeu uma avença mensal de 3550 euros para elogiar o Governo do antigo líder socialista.
A partir de certa altura, os pagamentos foram feitos em nome do seu filho, assessor desde 2015 do gabinete do presidente da Câmara de Lisboa. Pelo menos desde 2012 era o jovem quem passava os correspondentes recibos à RMF.
O i sabe que Peixoto e o filho já foram também já chamados a depor no âmbito do outro processo que surgiu a partir da Operação Marquês, sendo já arguidos. Em causa estão crimes de falsificação de documentos. Domingos Farinho não se pode recusar a responder ontem por ainda não ser arguido nesse outro processo.