A hipócrita solidariedade humana


A reconstrução de Notre-Dame será, certamente, acompanhada mediaticamente e terminará com uma inauguração de pompa. Da recuperação de Sofala e das vidas dos milhares de moçambicanos afetados nada se saberá, e perdurará no esquecimento.


A bondade humana dá, neste milénio, sinais de contágio com o que é, hoje, a principal tendência das coisas: superficialidade e mediatismo.

Talvez por culpa das redes sociais, dos youtubers e desta sociedade de consumo imediato, o ser humano dá cada vez mais sinais de viver as tragédias e solidarizar–se com elas num ritmo do estilo Twitter. Presencia-se uma catástrofe, uma calamidade ou um incidente grave e, em dois ou três dias, toda a gente comenta, toda a gente contribui e se envolve para, dois ou três dias depois, o acontecimento cair no esquecimento.

Mais incompreensíveis são os fenómenos que envolvem perda de vidas humanas ou em que homens, mulheres e crianças correm risco de vida ou são colocados em situação de profunda degradação. Perante estes, o mundo choca-se, mobiliza-se e age – normalmente contribuindo financeiramente – e, tal como Pilatos, lava as suas mãos e prossegue o seu caminho.

Há cerca de uma semana, o planeta (em rigor, uma pequena parte dele), despertou com o choque de Notre-Dame em chamas. Naturalmente que, para quem sabe o que é e entende o seu significado na história da França e na cultura europeia, o que aconteceu é triste e exalta o espírito de solidariedade. Mas grande parte do planeta não sabe, não quer saber e este incidente é irrelevante para os problemas do seu quotidiano. As pessoas que foram afetadas pelo ciclone Idai em Moçambique, os migrantes do norte de África (ainda se lembram deles?), os migrantes detidos à porta dos EUA ou as vítimas da guerra na Síria, desconfio, não tiveram tempo para lamentar este infortúnio.

Eu, naturalmente, fiquei impressionado, assim como ficaria se algo semelhante acontecesse aos Jerónimos, ao Convento de Mafra ou à Catedral de Barcelona, por exemplo. O que me fez alguma confusão foi a prontidão com que os milionários franceses se apressaram a doar fortunas para a reconstrução da catedral.

Num espaço de horas, Bernard Arnault, o dono do grupo LVMH, anunciou uma doação de 200 milhões de euros, e François Pinault uma doação de cem milhões – a juntar a estas, muitas outras que elevaram o patamar para os 600 milhões de euros.

A crítica não vai para o gesto, que é certamente bem-vindo e totalmente legítimo. A crítica vai para a ausência destes gestos-relâmpago quando o que está em causa são vítimas humanas.

Estes benfeitores de Notre-Dame ficarão certamente na História como beneméritos contribuintes para a restituição da catedral ao povo. Ficará registado na História, escrito nos livros, nas wikipédias da vida e, muito provavelmente, será relembrado nas aulas de História para todo o sempre.

O mesmo talvez não acontecesse se o gesto fosse feito para aliviar o sofrimento das crianças vítimas do longo conflito na Síria, ou para ajudar a reconstrução da região de Moçambique afetada pelo ciclone. Seria reconhecido o gesto, mas estaria condenado ao esquecimento do resto do mundo. Nem mesmo os beneficiários da ajuda poderiam alguma vez retribuir. 

O mesmo não se poderá dizer dos 13 milhões de visitantes que Notre-Dame recebe por ano e, entre eles, os que vão continuar a assegurar as visitas às lojas do grupo LVMH e o consumo dos seus produtos de luxo, tais como: Hennessy, Moët & Chandon, Dom Pérignon, Veuve Clicquot, Tag Heuer, Zenith, Hublot, De Beers, Louis Vuitton, Fendi, Bvlgari, Donna Karan, Kenzo, Loewe ou Marc Jacobs.

A ajuizar por esta luxuosa lista de produtos, eu diria que 200 milhões são uma enorme generosidade, mas pecam por escasso para um grupo que fatura acima dos 46 mil milhões de euros. Em rigor, a doação foi de cerca de 4% da faturação do grupo; é significativa e é certamente de boa vontade. Contudo, não acho que seja totalmente superficial e – nada me convence do contrário – não tem associada uma contrapartida clara: garantir o fluxo de consumidores dos seus produtos.

A ironia de tudo isto é que o incidente de Notre-Dame mobilizou 16 vezes mais recursos que a ajuda inicial a Moçambique. O tempo recorde em que a catedral irá ser reconstituída contrastará com os anos que Moçambique levará a reerguer a província de Sofala e os seus 1300 quilómetros quadrados de terra inundada. 

A reconstrução de Notre-Dame será, certamente, acompanhada mediaticamente e terminará com uma inauguração de pompa. Da recuperação de Sofala e das vidas dos milhares de moçambicanos afetados nada se saberá, e perdurará no esquecimento.

É isto a hipócrita solidariedade humana.

Escreve à quinta-feira


A hipócrita solidariedade humana


A reconstrução de Notre-Dame será, certamente, acompanhada mediaticamente e terminará com uma inauguração de pompa. Da recuperação de Sofala e das vidas dos milhares de moçambicanos afetados nada se saberá, e perdurará no esquecimento.


A bondade humana dá, neste milénio, sinais de contágio com o que é, hoje, a principal tendência das coisas: superficialidade e mediatismo.

Talvez por culpa das redes sociais, dos youtubers e desta sociedade de consumo imediato, o ser humano dá cada vez mais sinais de viver as tragédias e solidarizar–se com elas num ritmo do estilo Twitter. Presencia-se uma catástrofe, uma calamidade ou um incidente grave e, em dois ou três dias, toda a gente comenta, toda a gente contribui e se envolve para, dois ou três dias depois, o acontecimento cair no esquecimento.

Mais incompreensíveis são os fenómenos que envolvem perda de vidas humanas ou em que homens, mulheres e crianças correm risco de vida ou são colocados em situação de profunda degradação. Perante estes, o mundo choca-se, mobiliza-se e age – normalmente contribuindo financeiramente – e, tal como Pilatos, lava as suas mãos e prossegue o seu caminho.

Há cerca de uma semana, o planeta (em rigor, uma pequena parte dele), despertou com o choque de Notre-Dame em chamas. Naturalmente que, para quem sabe o que é e entende o seu significado na história da França e na cultura europeia, o que aconteceu é triste e exalta o espírito de solidariedade. Mas grande parte do planeta não sabe, não quer saber e este incidente é irrelevante para os problemas do seu quotidiano. As pessoas que foram afetadas pelo ciclone Idai em Moçambique, os migrantes do norte de África (ainda se lembram deles?), os migrantes detidos à porta dos EUA ou as vítimas da guerra na Síria, desconfio, não tiveram tempo para lamentar este infortúnio.

Eu, naturalmente, fiquei impressionado, assim como ficaria se algo semelhante acontecesse aos Jerónimos, ao Convento de Mafra ou à Catedral de Barcelona, por exemplo. O que me fez alguma confusão foi a prontidão com que os milionários franceses se apressaram a doar fortunas para a reconstrução da catedral.

Num espaço de horas, Bernard Arnault, o dono do grupo LVMH, anunciou uma doação de 200 milhões de euros, e François Pinault uma doação de cem milhões – a juntar a estas, muitas outras que elevaram o patamar para os 600 milhões de euros.

A crítica não vai para o gesto, que é certamente bem-vindo e totalmente legítimo. A crítica vai para a ausência destes gestos-relâmpago quando o que está em causa são vítimas humanas.

Estes benfeitores de Notre-Dame ficarão certamente na História como beneméritos contribuintes para a restituição da catedral ao povo. Ficará registado na História, escrito nos livros, nas wikipédias da vida e, muito provavelmente, será relembrado nas aulas de História para todo o sempre.

O mesmo talvez não acontecesse se o gesto fosse feito para aliviar o sofrimento das crianças vítimas do longo conflito na Síria, ou para ajudar a reconstrução da região de Moçambique afetada pelo ciclone. Seria reconhecido o gesto, mas estaria condenado ao esquecimento do resto do mundo. Nem mesmo os beneficiários da ajuda poderiam alguma vez retribuir. 

O mesmo não se poderá dizer dos 13 milhões de visitantes que Notre-Dame recebe por ano e, entre eles, os que vão continuar a assegurar as visitas às lojas do grupo LVMH e o consumo dos seus produtos de luxo, tais como: Hennessy, Moët & Chandon, Dom Pérignon, Veuve Clicquot, Tag Heuer, Zenith, Hublot, De Beers, Louis Vuitton, Fendi, Bvlgari, Donna Karan, Kenzo, Loewe ou Marc Jacobs.

A ajuizar por esta luxuosa lista de produtos, eu diria que 200 milhões são uma enorme generosidade, mas pecam por escasso para um grupo que fatura acima dos 46 mil milhões de euros. Em rigor, a doação foi de cerca de 4% da faturação do grupo; é significativa e é certamente de boa vontade. Contudo, não acho que seja totalmente superficial e – nada me convence do contrário – não tem associada uma contrapartida clara: garantir o fluxo de consumidores dos seus produtos.

A ironia de tudo isto é que o incidente de Notre-Dame mobilizou 16 vezes mais recursos que a ajuda inicial a Moçambique. O tempo recorde em que a catedral irá ser reconstituída contrastará com os anos que Moçambique levará a reerguer a província de Sofala e os seus 1300 quilómetros quadrados de terra inundada. 

A reconstrução de Notre-Dame será, certamente, acompanhada mediaticamente e terminará com uma inauguração de pompa. Da recuperação de Sofala e das vidas dos milhares de moçambicanos afetados nada se saberá, e perdurará no esquecimento.

É isto a hipócrita solidariedade humana.

Escreve à quinta-feira