A Líbia é um país completamente forjado, formado por uma fusão improvável entre três regiões, a Trípolitânia, a Cirenaica e Fezã”, explica ao i Filipe Pathé Duarte, professor universitário e analista de geopolítica, que relembra que a Líbia só surgiu com a ocupação colonial italiana. Cada uma das regiões do país tem “uma identidade muito própria”, apenas mantendo algum grau de unidade nacional “com o regime semi-tribal imposto por Muammar Kadhafi”, que garantia “a distribução dos rendimentos provenientes do gás natural e do petróleo pelas elites”.
Começam aqui os problemas da Líbia, que levaram à luta desesperada por poder que se arrasta desde a queda de Kadhafi, após uma intervenção militar da NATO. O vazio de poder deixado pela ausência de Kadhafi voltou a acender as chamas da guerra civil a semana passada, com a ofensiva do general Khalifa Haftar, em nome do governo sediado em Tobruk, na Cirenaica, contra o governo apoiado pelas Nações Unidas, em Trípoli.
A ofensiva de Haftar surge “num momento de absoluta surpresa para todos os intervenientes”, assegura Pathé Duarte, que lembra que Haftar “avança impunemente, a cerca de uma semana de uma conferência de paz”, enquanto estava em Trípoli o secretário-geral da ONU, António Guterres. A ofensiva surge após da tomada do campo petrolífero de El Sharara, responsável por cerca de 25% da produção de petróleo do país – quando Haftar já controlava a zona do chamado “crescente petrolífero”, na costa da Líbia, “a partir de onde sai o petróleo do país”. “Ficou a controlar a produção e a exportação”, conclui Pathé Duarte.
O analista de Segurança está convicto de que “a liderança de Tobruk é muito mais eficaz e tem maior capacidade militar” que a de Trípoli, gozando “de apoio indireto por parte do Egito, dos Emirados Árabes Unidos e da Rússia”, que disputam os recursos grandes energéticos da região.
Já o General Carlos Branco, investigador do Instuituto Português de Relações Internacionais (IPRI), salienta o papel da rivalidade entre a Itália e França no conflito, notando que “as forças especiais francesas estão a apoiar Haftar há muito tempo”, sobretudo “a nível de treino militar e técnicas de combate”.
Apesar destes apoios, “Haftar lançou-se para fora de pé e é capaz de se afogar”, considera o general português, dado que “não tem um potencial relativo de combate” para eliminar o governo de Trípoli. “As forças que atacam têm de ter uma capacidade de combate consideravelmente superior a quem defende”, explica o general. Branco nota que o governo central está a contra-atacar, visando “fundamentalmente a logística, atacando as linhas de comunicação”, que estão “demasiado estendidas”.
Quer Trípoli caia ou não, esta ofensiva confirmou Haftar como o mais poderoso senhor da guerra líbio. O general renegado defende as suas ações como “uma espécie de combate ao terrorismo”, afirma Pathé Duarte, que vê na narrativa uma tentativa ganhar legitimidade, capitalizando o sucesso da chamada “Operação Dignidade” – que levou à tomada de Benghazi, a segunda maior cidade do país, até então sob controlo de fações ligadas ao Estado Islâmico.
Já Branco considera que as ofensivas de Haftar contra grupos islamitas foram sobretudo “para defender a pele”, face à ameaça do crescimento do extremismo islâmico. O general acrescenta que, por mais que Haftar se tente apresentar como o líder político da Líbia, “não há garantias que consiga desempenhar o papel unificador de Kadhafi”. O antigo ditador líbio, além de utilizar a força, “conseguiu arranjar formas, para nós absolutamente exuberantes, de apelar às populações, como quando recebia os altos dignitários estrangeira nas tendas, com roupas berberes – tudo isso fazia parte de um folclore para a audiência interna”.
De exilado a senhor da guerra Haftar foi um dos homens mais próximos de Khadafi, com quem esteve lado a lado, ainda jovem, no golpe que o levou ao poder em 1969. Mas toda a glória que vem com o estatuto de herói da revolução esfumou-se de um momento para o outro, com a derrota das forças líbias na guerra com o Chade, em 1987, altura em que Haftar foi capturado.
De súbito, o herói virou exilado, fugindo para os Estados Unidos e alinhando-se com a oposição líbia. O agora senhor da guerra passou “a viver na Vírginia, mesmo ao lado do quartel-general da CIA”, conta o general Carlos Branco. “Pensar que isto acontece porque lhe apeteceu… estes indivíduos quando desertam é porque alguém lhes promete alguma coisa”. Quanto às intenções dos EUA, Branco diz: “Suspeito que Haftar era o homem que os americanos, ou os franceses, tinham de reserva para assumir o poder”.
Entretanto algo terá corrido mal, dado que o general renegado regressou à Líbia e se tornou um poderoso senhor da guerra, que tenta derrubar o governo apoiado pelos EUA. O general Branco explica que “este tipo de personagens quando vão para o exílio nunca perdem as raizes e os contactos com a sociedade”. Quanto ao motivo do desentendimento com os EUA, sentencia: “Muitas vezes Roma não paga a traidores”.