A internet não vai acabar mas vai ficar diferente

A internet não vai acabar mas vai ficar diferente


Nova diretiva dos direitos de autor foi aprovada ontem no Parlamento Europeu, mas as críticas continuam. Legislação terá de ser transposta pelos Estados-membros dentro de dois anos e não impõe a criação de filtros aos conteúdos que se publicam online para proteger direitos de autor, mas críticos acreditam que é isso que vai acabar por…


Depois de meses de discussão, um sentimento de alívio. Foi assim que Axel Voss, o eurodeputado alemão que foi relator da diretiva dos direitos de autor ontem aprovada no Parlamento Europeu, descreveu o estado de espírito depois do plenário em Estrasburgo. “Sei que muitas pessoas que são ativas na internet podem estar frustradas com este resultado, mas posso dizer que, por mais sombrio que tenha sido o retrato pintado nas últimas semanas, é um exagero”. 

Em causa está a discussão em torno dos artigos 11 e 13, entretanto renumerados, que preveem um maior controlo dos conteúdos com direitos de autor na internet. 

Chegou a ser discutida a proibição da partilha de memes e GIF’s, com as empresas a instalarem filtros que as ilibariam de pagar futuras multas. O texto aprovado ontem não vai tão longe, mas os críticos mantêm que é esse o cenário. “Dia negro para a liberdade na internet”, declarou no Twitter Julia Reda, eurodeputada pelo Partido Pirata Alemão e um dos principais rostos de oposição à mudança legislativa ontem firmada com 348 votos a favor e 247 contra. Nas redes sociais, sob a hashtag #saveyourinternet, as críticas não se fizeram esperar, não só ao resultado da votação mas ao trabalho dos eurodeputados, com muitos utilizadores a lembrarem a proximidade das eleições europeias. E a sugerirem o uso do voto como protesto. 

Axel Voss sublinhou que a principal mudança é as plataformas tecnológicas e não os utilizadores passarem a ser responsáveis por garantir os direitos de autor dos conteúdos que são partilhados. Em conferência de imprensa, Andrus Ansip, vice-presidente da Comissão Europeia, que elaborou a proposta original, deu vários exemplos de como os direitos de autor são pagos em diferentes contextos, da indústria televisiva às editoras discográficas, defendendo o mesmo direito para a imprensa na era digital, ainda que no passado os editores de comunicação social tenham achado que esta devia ser uma preocupação dos jornalistas enquanto se mantinham “neutros” – no fundo, a posição que as plataformas tecnológicas hoje queriam continuar a ter, notou. 

“Hoje temos dois tipos de plataformas. Algumas são baseadas em subscrição. De acordo com a McKinsey, tinham, no ano 2016, 212 milhões de subscritores que pagaram a músicos, a nível mundial, 3,9 mil milhões de dólares. Os músicos não estão totalmente contentes, mas conseguem viver com isto. Mas há outro tipo de plataformas que tinham 900 milhões de utilizadores e que pagaram aos músicos apenas 533 milhões de dólares. Claro que não estão felizes”, citou. 

“Bom, quando consumimos eletricidade sabemos quantos quilowatts/hora consumimos por mês e pagamos as nossas contas em função disso. Quando consumimos água, sabemos quantos metros cúbicos consumimos e pagamos. As estações de rádio sabem exatamente quantas vezes passam as músicas nas suas playlists e os autores são remunerados em função disso”, continuou Andrus Ansip. 

“Com as bibliotecas, é a mesma história: sabem exatamente quantas vezes é que as pessoas levaram determinado livro e os autores são remunerados em função disso. Porque é que temos de pensar que, na internet, algumas pessoas podem usar conteúdos criados por outras pessoas sem se garantir uma remuneração? Não me parece justo. Penso que esta diretiva é muito melhor do que o sistema que tínhamos”.

O que muda? Se os Estados-membros aceitarem o texto aprovado nas próximas semanas, terão dois anos para implementar a diretiva. Segundo o PE, pretende-se garantir que os direitos e obrigações da lei dos direitos de autor se aplicam na internet, e não criar direitos novos. YouTube, Facebook e Google serão as tecnológicas diretamente mais afetadas pelas mudanças legislativas. 

Ao tornar as plataformas responsáveis pelos conteúdos, abre-se espaço a negociação de licenciamento para que os conteúdos sejam difundidos, o que, no caso dos órgãos de comunicação social, poderá ser feito pelos editores de imprensa sem passar pelos autores das peças. 

Sem este licenciamento e remuneração dos direitos de autor, a partilha de conteúdos não será legal e as plataformas têm de criar mecanismos para a prevenir. A forma como tudo será regulamentado estará nas mãos dos Estados-membros. “Aqueles cujo trabalho seja usado ilegalmente (sem pagamento de direitos) poderão processar a plataforma”, diz o PE. 

Não ficam fechadas as ferramentas e os filtros serão uma opção na ausência de outras mais “criativas”, admite o Parlamento Europeu. Mas há exceções. Por exemplo, poderão continuar a ser partilhadas pré-visualizações de artigos (snippets), mas apenas acompanhadas de um “texto muito curto”. Também em partilhas para efeito de crítica, caricatura ou paródia poderão ser usadas imagens autorizadas, o que dá continuidade aos memes ou GIF’s (imagens satíricas que fazem parte da cultura digital). 

Uma das questões que se levantam é como será possível destrinçá-lo na prática: “Se um filtro não tiver capacidade de fazer essa distinção, podem ser censurados memes se estiver em causa uma imagem de um conteúdo protegido, por exemplo uma imagem de um filme”, exemplifica ao i Eduardo Santos, da associação D3 – Defesa dos Direitos Digitais, que desde 2016 tem acompanhado o processo de revisão da lei e critica o alcance que poderá vir a ter, antevendo restrições à liberdade de expressão online. 

Outra preocupação são as startups que operam nesta área: plataformas que funcionem há menos de três anos ou que tenham até 5 milhões de visitantes, ou lucro de 10 milhões de euros, têm menos obrigações que as gigantes tecnológicas, mas ao fim de três anos passam a comparar-se com as maiores. “Que startup é que, ao fim de três anos, tem capital para implementar um sistema como a Google? Na melhor das hipóteses, vai comprar à Google, o que deixa estas empresas numa situação vantajosa”, diz Eduardo Santos.

Em comunicado, o Parlamento Europeu defendeu ontem que, até aqui, as empresas tinham poucos incentivos para fazer acordos de licenciamento de forma justa com os detentores de direitos, cenário que Bruxelas acredita mudará daqui para a frente. Na documentação publicada ontem, o Parlamento diz ainda que a campanha de lóbi em torno da diretiva foi das mais intensas de sempre, considerando “excessivas” as críticas de que a mudança na lei vai “matar a internet”. 

Em Portugal, um alerta feito pelo youtuber Wuant levou a Comissão Europeia a responder. “Foi um recurso estilístico, é julgado por ter dito a frase de forma literal quando sempre o disse de forma figurada”, diz Eduardo Santos, sublinhando que, além dos receios dos utilizadores, o maior lóbi resultou de editores e autores, e não das empresas tecnológicas. A fundamentar a afirmação está um levantamento feito pelo Corporate Europe Observatory, que indica que desde novembro de 2014 houve 765 encontros declarados entre lobistas e a Comissão Europeia sobre o tema dos direitos de autor, dos quais 93% relacionados com indústrias criativas e os restantes com tecnológicas.

O impacto da diretiva é por agora incerto e, ontem, as reações dividiam-se entre o renovar das críticas e os aplausos. Fabrice Fries, da agência noticiosa AFP, saudou um tempo de novas regras na era digital. “A diretiva, se for bem transposta, pode contribuir para a manutenção do jornalismo no terreno, o que tudo nos mostra que ainda é a melhor forma de combater a desinformação”.