Eu reconheço, tu reconheces, nós não reconhecemos


De como a multiplicação de governos na Venezuela permite recordar as prerrogativas do Estado soberano em matéria de reconhecimento de governos


A liberdade no reconhecimento de um determinado governo é a última fronteira da soberania dos Estados. Mesmo aqueles Estados que integram organizações internacionais com ambições de integração política respeitam a liberdade em matéria de reconhecimento de governos estrangeiros. A recente multiplicação de declarações políticas no seio da União Europeia a propósito do reconhecimento do(s) governo(s) venezuelano(s) só abona a favor da manutenção do reconhecimento como uma prerrogativa do Estado soberano. A resolução ontem aprovada pelo Parlamento Europeu reconhecendo o auto-proclamado governo de Juan Guaidó não vincula a União Europeia e muito menos os Estados-membros. Também não relevam as decisões de entidades infra-estaduais, como foi a pronúncia do Governo da Região Autónoma da Madeira a favor do reconhecimento do governo de Guaidó, o que, nos termos da Constituição da República Portuguesa, não vincula os órgãos de soberania com competência para tomar decisões em matéria de política externa.

A prática dos Estados confere ao reconhecimento dos governos estrangeiros uma enorme discricionariedade. Tal não significa que não seja desejável balizar essa mesma discricionariedade. A América Latina, com uma pujante história de golpes de Estado, de intervenções estrangeiras e de influência externa no funcionamento dos governos tem contribuído não só com exemplos práticos mas também com algumas construções doutrinárias. Genaro Estrada, ministro dos Negócios Estrangeiros do México sistematizou, em 1930, a coincidência entre o reconhecimento do Estado e o reconhecimento do governo. Como não se discute o reconhecimento do Estado (que já aconteceu num momento anterior) o reconhecimento do governo em funções decorre do primeiro. A doutrina Estrada evita a discussão em torno da legitimidade de um novo governo chegado ao poder com violação dos mecanismos constitucionais e funciona sempre que não haja pluralismo de governos.

Se mais do que um governo coincide no tempo, como é o caso da Venezuela nos dias de hoje, há, também com origem na América Latina, uma doutrina que afasta o reconhecimento de governos que não resultem de eleições livres (doutrina Tobar). Como seria de esperar esta doutrina nunca gozou de uma aceitação generalizada. No caso da Venezuela os dois governos reivindicam uma legitimidade formal resultante de eleições (presidenciais no caso de Maduro, parlamentartes no caso de Guaidó) se bem que as eleições presidenciais tenham deixado a desejar em matéria de liberdade e justiça.

Sendo o reconhecimento um acto livre, ou como tal reivindicado pela maioria dos Estados (e pela sua prática) que consequências decorrem do não reconhecimento de um determinado governo (não reconhecimento que pode resultar do reconhecimento de outro…)? No caso dos EUA o não reconhecimento implica a denegação de acesso do governo não reconhecido aos tribunais dos EUA e a denegação de acesso ao património que se encontre nos EUA.

Mais complexa é a questão do reconhecimento, por tribunais estrangeiros, de decisões e actos jurídicos praticados por governos que controlam parte do território. Retomando o exemplo venezuelano, e se a pluralidade de governos se mantiver, será provável que cada um dos governos venha a controlar efectivamente uma determinada parcela do território. Será em função desse controlo de facto que serão avaliados os actos praticados por cada um dos governos, incluindo-se nessa avaliação o elemento de responsabilização de cada governo.

 

Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990