O art.o 20.o da Constituição assegura a todos os cidadãos o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos. Neste momento, devido ao elevado valor das custas judiciais, a justiça não está a ser assegurada a todos, mas apenas a duas classes de cidadãos: os ricos e os pobres. Em relação aos ricos, estes beneficiam do acesso à justiça porque têm dinheiro para suportar o presente valor das custas judiciais. Em relação aos pobres, os mesmos conseguem ter acesso à justiça por via da consagração do instituto do acesso ao direito, que lhes garante a possibilidade de recorrer aos tribunais para defesa dos seus direitos.
Há, porém, uma enorme categoria de cidadãos que já foi altamente penalizada pela crise e que permanece hoje completamente excluída do acesso aos tribunais por não ter dinheiro para pagar as custas judiciais: a classe média. Efectivamente, como o sistema de acesso ao direito se encontra reservado a pessoas indigentes, as pessoas da classe média não conseguem aceder a esse sistema, mesmo que tenham rendimentos baixos.
Nesse caso, o simples facto de um cidadão ser envolvido num litígio judicial pode representar para ele uma enorme tragédia pessoal a nível financeiro, uma vez que não apenas tem de pagar adiantadamente a taxa de justiça para exercer os seus direitos processuais como ainda terá de reembolsar os custos da outra parte, inclusivamente com advogados, na hipótese de perder a causa. E mesmo que ganhe a causa, o Estado ainda o obriga a pagar-lhe o que não adiantou no início do processo da taxa de justiça devida, dizendo-lhe para depois ir pedir à outra parte que o reembolse. Esta última regra já foi julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional no acórdão 615/2018, de 21 de Novembro, mas a lei ainda não sofreu qualquer alteração desde então. Sabendo-se das elevadíssimas custas que implica o próprio acesso ao Tribunal Constitucional, é de prever que muitos cidadãos irão continuar por muito tempo a pagar estas importâncias, apesar de o Tribunal Constitucional as ter considerado indevidas.
Infelizmente, este drama silencioso, que afecta tantos cidadãos, tem passado completamente ao lado dos discursos oficiais, como na recente cerimónia de abertura do ano judicial. O bastonário da Ordem dos Advogados limita-se a dizer que há uma justiça para ricos e outra para pobres, esquecendo-se precisamente da classe média, que não tem presentemente qualquer acesso aos tribunais por não ter condições para suportar o seu custo. E a ministra da Justiça dá recentemente uma entrevista ao “Expresso” onde afirma que “as custas são o preço da Justiça e a Justiça é efetivamente cara”, entendendo, no entanto, que “o importante não é tanto o preço das custas – porque é preciso que as pessoas tenham ideia de quanto custa um processo – mas garantir o acesso ao Direito”. E por isso se recusa a baixar o valor das custas judiciais, propondo apenas criar escalões de rendimento dos cidadãos, estabelecendo uma variação dessas custas com base no rendimento das pessoas. Teríamos, assim, os custos do acesso aos tribunais a variar em função do IRS que cada pessoa paga.
O problema é que esta solução não faz qualquer sentido, uma vez que assegurar a justiça é uma das funções essenciais do Estado, a qual deve, por isso, ser primordialmente financiada pelos impostos. O recurso a taxas, como a taxa de justiça, deve ter uma função complementar, não podendo assim as mesmas serem estabelecidas em valores que não tenham qualquer correspondência com o efectivo custo do serviço público prestado ou que possam impedir grande parte dos utentes de recorrer a esse serviço. Se a ministra da Justiça reconhece que a justiça é cara, então é manifesto que as custas judiciais devem ser reduzidas, não devendo o Estado cobrar preços elevados quando presta aos cidadãos um serviço público fundamental.
No Sermão da Montanha, Jesus diz aos seus seguidores que são bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça porque serão saciados. Em Portugal, o que o Estado diz aos cidadãos é que, para saciarem a fome e a sede de justiça que têm, devem pagá-la aos preços de lagosta e champanhe francês. Há, de facto, algo de muito errado com a justiça em Portugal.
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Escreve à terça-feira, sem adopção
das regras do acordo ortográfico de 1990