O cenário nem sempre é o mesmo e o contexto também não. Mas há uma linha comum – o ataque à liberdade e as condições deploráveis em que vivem. O caso mais recente aconteceu na semana passada, quando uma loja chinesa no Seixal foi alvo de uma investigação por suspeitas de crime de tráfico humano. E a verdade é que a Guarda Nacional Republicana encontrou 24 pessoas a viverem no estabelecimento inaugurado recentemente – 17 cidadãos nepaleses, quatro chineses, um romeno, um brasileiro e um português. Os indícios de crime de tráfico humano foram encontrados e o caso está agora no Ministério Público do Seixal.
O ano que agora terminou foi palco de diversas denúncias de casos deste tipo de crime, desde exploração laboral a exploração sexual e “Portugal tem-se evidenciado mais como país de destino, ou seja, não só como um país de passagem de vítimas, mas como um país onde as pessoas são exploradas”, explica ao i Joana Menezes, responsável pela Rede de Apoio à Vítima Migrante e de Discriminação da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV). Por exemplo, no final do ano de 2018, a operação Masline – que decorreu durante um ano – desenvolvida pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) na zona de Beja, sinalizou 26 vítimas de tráfico de seres humanos e oito delas foram instaladas em centros de acolhimento e proteção. Masline significa azeitona em romeno e foi a maior operação de combate ao tráfico de seres humanos desenvolvida pelo SEF. As vítimas, vindas do leste da Europa, estavam “na sua maioria, sujeitas a condições degradantes no que diz respeito às condições de trabalho, alojamento e salubridade”, esclareceu o SEF. No fim, foram detidos seis cidadãos estrangeiros indiciados pela prática deste crime e encontram-se agora em prisão preventiva.
Tanto neste caso específico, como na maioria, as vítimas são aliciadas através de melhores condições de vida, mas acabam por ficar privadas dos respetivos documentos e são obrigadas a trabalhar sem o devido pagamento. Muitas vezes perseguem um sonho – iludidos pela promessa de uma vida melhor, ou até perfeita. É o que acontece no mundo do desporto, por exemplo. O sonho de jogar num grande clube da primeira ou segunda divisão acaba por se revelar um pesadelo e a realidade passa por um apartamento onde vivem várias pessoas sem condições, sem dinheiro e sem um dos princípios da democracia – a liberdade. Em três anos, foram identificados quinze cidadãos vítimas de tráfico humano no futebol. Segundo os dados do Observatório do Tráfico de Seres Humanos (OTSH), todas as vítimas vinham de fora da Europa – a maioria do Brasil – e duas delas eram menores. Os casos são geralmente conhecidos pelas pessoas próximas aos clubes, mas são difíceis de identificar, já que os supostos agentes que trazem os jogadores desaparecem e é difícil seguir o seu rasto.
A lei nem sempre foi igual Hoje é crime, mas só o foi considerado a partir de 2007. Antes dessa data, a lei portuguesa apenas contemplava a exploração sexual como crime. Tal como explica ao i a chefe de equipa do Observatório do Tráfico de Seres Humanos, Rita Penedo, “em 2007, o crime de tráfico de pessoas passou (…) a integrar o Capítulo IV do Livro II “Dos crimes contra a liberdade pessoal”, sendo revistos neste ano os tipos de exploração.
Para caracterizar a aplicação da lei, a operação “Pokhara” é um exemplo bem claro disso. Em novembro do ano passado, a operação resultou nas penas de prisão de 13 e 14 anos para três arguidos acusados de 23 crimes de tráfico de seres humanos. No total, eram 23 estrangeiros que trabalhavam na apanha dos morangos, no concelho de Almeirim, e viviam “num anexo de três divisões sem cozinha, janelas, eletricidade, água, saneamento básico e sem mínima possibilidade de escaparem, uma vez que os empresários tinham os seus documentos cativos”, segundo comunicado do SEF. Mais: os contratos eram “redigidos em português, os cidadãos estrangeiros recebiam pouco mais de 500 euros por mês, aos quais era descontado, à cabeça, o valor do alojamento, da comida e, ainda, 200 euros para a Segurança Social”, acrescenta o SEF.
Recuperar a liberdade. É possível? De facto, é muito difícil identificar as linhas primárias do tráfico de seres humanos, mas no caso em que são identificados os suspeitos e as redes de tráfico, é necessário garantir o apoio e proteção das vítimas. Na maior parte das vezes estão longe do seu país, sozinhas e com um passado recente capaz de deixar marcas para o resto da vida. Há pelo menos três áreas cruciais no apoio à vítima de tráfico humano: o apoio jurídico, psicológico e social. No entanto, “é difícil que as vítimas procurem apoio por espontânea vontade”, diz Joana Menezes. E acrescenta que normalmente as situações são encaminhadas pelas autoridades.
Deixando os números de lado, aqui fala-se especificamente da questão humana. Como é que alguém depois de, muitas vezes, sujeito a condições de violência extrema, pode confiar numa instituição que não conhece? Como explica a responsável pela Rede de Apoio à Vítima Migrante e de Discriminação, as vítimas “têm muita desconfiança relativamente a que outras pessoas possam decidir coisas sobre a sua vida, porque é difícil explicar a estas pessoas que se forem para um centro de acolhimento e proteção têm muito mais liberdade”. Durante o período de exploração, diz Joana Menezes ao i, é dito às vítimas que se forem identificadas pelas autoridades serão internadas em hospitais e, aí sim, perderão a sua liberdade.
A questão psicológica é talvez a parte mais importante no processo de apoio – e a mais difícil também. O primeiro passo é então deixar claro que a pessoa estava a ser explorada e as condições em que vivia não são dignas, “porque há situações de exploração que duram muitos anos e, para as próprias pessoas, nem sempre é claro que estão numa situação de exploração”, diz Joana Menezes. No caso de mulheres exploradas sexualmente, “de alguma forma elas conseguem ter condições de vida talvez um pouco melhores daquelas que tinham antes e acabam por construir uma relação de dependência com as pessoas ou com a rede que as explora”, explica. A recuperação emocional é um longo percurso, assim como a recuperação da verdadeira liberdade. “Voltar a ser capaz, ou ser capaz pela primeira vez”, já que muitas pessoas nunca tiveram qualquer tipo de oportunidade.
Regressar ao seu país de origem é uma hipótese que muito poucas pessoas colocam e depende também das circunstâncias e da realidade dos próprios países de onde saíram. “Se não tinham família, se o país não tem condições para desenvolver uma atividade profissional, se tem uma situação política instável, ou até se não respeita os direitos humanos”, então as pessoas preferem ficar no nosso país, explica Joana Menezes.