Escape at Dannemora. O sonho americano e a prisão ao seu redor

Escape at Dannemora. O sonho americano e a prisão ao seu redor


Transmitida em Portugal pela TVSéries, “Escape at Dannemora” relata com detalhe a fuga de dois condenados de uma prisão de máxima segurança nos EUA, em 2015. Mas a série realizada por Ben Stiller é também uma subtil reflexão sobre esse país desolado que elegeu Trump 


Um deles foi morto, o outro capturado, voltou a bater com os ossos numa cela. E se está preocupado com spoilers, descanse. “Escape at Dannemora” não é esse tipo de série. Mas vamos aos factos primeiro. Em junho de 2015, quando se evadiram de uma prisão de máxima segurança, Richard Matt tinha 49 anos e devia a melhor parte de uma pena de 25 anos ao Estado, ao passo que David Sweat, com 35, não tinha ângulo por onde ver uma fissura na sua sentença. Não havia para ele copo meio cheio nem meio vazio, mas só um copo de mijo, condenado a passar o resto da vida na Clinton Correctional Facility, um gelado fim do mundo que mereceu a alcunha “Little Siberia”. Perto da fronteira com o Canadá, esta deprimente choldra fica na zona mais a norte do estado de Nova Iorque e é o tipo de lugar que levou Ben Stiller, o realizador da série, a confessar que lhe bastou meia hora ali para não pensar noutra coisa senão em pôr-se a milhas. Como notou Troy Patterson num artigo da “New Yorker”, um dos aspetos que a minissérie melhor retrata é a forma como o frio é o pior dos castigos: “O frio parece atuar como lixívia sobre a cor daquele cenário de cidade de província e, assim, a paisagem envolvente é tão desanimadora como o recinto institucionalmente ajardinado no interior da prisão.” Patterson adianta que, num certo sentido, é como se tanto os agentes correcionais como os outros funcionários civis partilhassem a miséria dos presidiários.

Criada por Brett Johnson e Michael Tolkin, esta produção da Showtime, dividida em sete episódios, mostrou-se uma oportunidade única para Stiller se reinventar, coisa tão difícil em Hollywood. Este “Tom Cruise judeu”, como chegou a ser descrito, tendo alcançado bastante popularidade com papéis minimamente memoráveis numa longa série de anódinas comédias, nas poucas escolhas mais arriscadas que pelo meio foi fazendo tinha já dado provas de um instinto que lhe permitia explorar a vulnerabilidade e escavar uma saída digna em personagens um tanto limitados. Por outro lado, se em “Tempestade Tropical” tinha demonstrado que conseguia garantir o sucesso de bilheteiras dos dois lados das câmaras, com “A Vida Secreta de Walter Mitty” soube usar a comédia como camuflagem para nos contar uma comovente história de superação em que a imaginação arranca um pobre coitado à invisibilidade para fazer dele um extraordinário aventureiro. Mas agora chegámos a outro nível. Chega a ser excruciante o nível de detalhe, a glacial frieza e o escrúpulo com que Stiller recriou uma das últimas grandes evasões das cadeias de máxima segurança nos EUA – um caso real em que dois condenados por homicídio se escapuliram e ainda andaram a monte durante três semanas, obrigando aquele estado a montar uma operação que custou 23 milhões de dólares para lhes deitarem a mão, e isto depois de congeminarem um elaborado plano que tem levado a comparações com a trama de “Os Condenados de Shawshank”.

Não foram só as aventurosas circunstâncias da fuga de Matt (Benicio Del Toro) e Sweat (Paul Dano), e nem a morte violenta do primeiro no final da enorme caça ao homem nas densas florestas da fronteira com o Canadá, que tornaram o caso tão badalado; para isso muito contribuiu o facto de, além de um pouco de sorte, a fuga ter decorrido de meses de preparação e ter envolvido um sórdido triângulo amoroso com uma das funcionárias civis, Joyce “Tilly” Mitchell (Patricia Arquette), a supervisora de uma das pequenas unidades de produção de vestuário que se integram nas prisões norte-americanas e conseguem vantagens competitivas empregando condenados em troca de salários ridículos. Tanto Matt como Sweat entraram para o quadro de honra daquela cadeia, o que lhes permitiu trabalhar para Tilly, fabricando, entre outras peças de vestuário, fardas prisionais. Tilly enrolou-se primeiro com um e depois com o outro, e o elemento sexual, bem como a manipulação, que funciona nos dois sentidos e dá espessura a este drama, permitindo explorar a fronteira entre fantasia e desespero e arrancar mais vastos reflexos das formas de escapismo, faz desta produção um tão profundo e movediço espelho. 

O que é notável nesta série é tratar-se de um desses raros exemplos em que a arte não faz demasiadas concessões nem ao formato nem ao medium, e nem às ululantes audiências que, hoje, exigem dos canais que lhes ofereçam o tipo de ficções imersiva a que possam assistir durante horas a fio, como se estivessem ligadas a uma máquina desfibrilhadora de baixa intensidade, sempre estimuladas, eternamente distraídas. Neste caso, a própria experiência de assistir a “Escape at Dannemora” chega a ser penosa. Sai-nos do pelo. E é natural que nos leve a refletir como raio é que tantos filmes e séries sobre a vida na prisão puderam ser levados a sério se eram capazes de se balançar entre extremos, dar-nos a sensação do perigo e do desespero, mas nunca conseguiam transmitir-nos essa forma tão particular de terror que nasce do confinamento e do imenso tédio das longas sentenças.

Pela interpretação de Tilly, Arquette levou para casa, há dias, o globo de ouro para melhor atriz numa minissérie. Mais do que merecido, e muito para lá da entrega que a levou a engordar quase 20 quilos para fazer o papel, é na complexidade psicológica e na expressão do seu conflito que mais sentimos o abismo a devolver-nos um olhar guloso. Temos de esperar até ao sexto episódio – já depois de Matt e Sweat se porem ao fresco, e numa altura em que estamos já a torcer por eles sem grandes reservas – para sermos levados em flashback até ao passado e só então sermos confrontados com a brutalidade dos crimes que os levaram à prisão. Mas, se menos violento, não é menos degradante o flashback que nos mostra como Tilly deu cabo da vida do ex-marido… Depois de ser apanhada a traí-lo com Lyle (Eric Lange), por puro desfastio, temendo perder a custódia do filho em tribunal, arma um plano para reverter a situação a seu favor, afastando-o a ele da relação com o filho. É uma sujeira dessas que raramente dão cana e que nos remetem para outras formas de prisão e inferno, tantas vezes em resultado desses crimes tão finos que se furtam às malhas da lei. E é aqui que a ficção enche o peito de ar e se abalança em terrenos bastante melindrosos, pintando um retrato fortíssimo e de tal modo trágico que é difícil não acreditar na sua veracidade: esta personagem, ao mesmo tempo repugnante e lastimável, não deixa de nos provocar um arrepio quando nos pomos a pensar que será esta a imagem daquela mulher que irá persistir, muito depois de ter cumprido a sua sentença.

Depois de ver a série, Tilly reagiu chamando a Stiller um “filho da puta de um mentiroso, tal como o resto do mundo”. Condenada a sete anos por ter ajudado Matt e Sweat, ela foi saltando entre diferentes versões do que realmente se passou, da sua colaboração, dizendo que foi usada e que eles se aproveitaram do facto de estar a atravessar uma depressão. “Ele [Ben Stiller] não quer saber da verdade. Tudo o que lhe interessa é sacar uns milhões à conta da minha miséria”, acusou Tilly. Stiller, por sua vez, além de ter estudado a fundo o caso, de ter passado muitos meses a planear as filmagens, que durariam oito meses, e de ter chegado a conhecer Sweat para conhecer e recriar ao pormenor a fuga, numa recente entrevista fez também saber que, para realizar o que foi um desses projetos de uma vida, nunca esteve em cima da mesa ganhar um salário chorudo. Mas, com tudo isto, o que tem de mais profunda esta série, além da delicada tensão entre realidade e ficção, da forma contemplativa como captura o ambiente físico e humano, são as suas intermináveis implicações, a forma como entrelaça os constrangimentos impostos à liberdade pelo sistema prisional ou pelas mais debilitantes das nossas frustrações e derrotas pessoais. E é nesse aspeto que esta série tão bem se apropria desta “pequena Sibéria”, mas, se toma balanço na realidade, dá um salto que vai muito além da verdade que circunscreve a uma narrativa factual para refletir sobre o desespero dessa América rural, esse mundo em declínio que, desprezado e já sem sonhos, vota num cretino para liderar o país. Pelo menos, assim o entretenimento está garantido. E aqueles que avançam sem olhar para trás são castigados, forçados a acordar dos seus sonhos para sentir o cheiro a mijo da realidade em que vivem os demais.