Mafalda Carvalho. Testes para celíacos nas farmácias? “Não servem para rigorosamente nada”

Mafalda Carvalho. Testes para celíacos nas farmácias? “Não servem para rigorosamente nada”


A presidente da Associação Portuguesa de Celíacos garante que basta uma dieta rigorosa para controlar a doença


A doença celíaca caracteriza-se por ser uma doença autoimune do intestino causada por uma reação ao glúten, um composto de proteínas presente nos mais variados alimentos. Nestes casos, a ingestão de glúten, mesmo em pequenas quantidades, leva o organismo a desenvolver uma reação imunológica contra o próprio intestino delgado, provocando lesões. Estas fazem com que ocorra uma diminuição da capacidade de absorção dos nutrientes. Alguns sintomas são a perda de apetite, de peso e de energia. A eliminação do glúten da alimentação de um celíaco permite que o intestino e o organismo recuperem das lesões. Com a reintrodução do glúten na alimentação, as inflamações e os sintomas reaparecem. Assim, surge a necessidade de encontrar espaços seguros para que as pessoas que vivem com este problema possam comer fora de casa sem risco de contaminação. É neste panorama que surge o projeto Gluten Free, uma parceria da Associação Portuguesa de Celíacos (APC) com a Biotrab, uma empresa que trabalha na área da segurança alimentar, que tem como objetivo certificar locais 100% isentos de glúten em Portugal. Mafalda Carvalho, presidente da APC, explicou a importância destes espaços, bem como os critérios necessários para a certificação.

Como surgiu a ideia de atribuir certificados Gluten Free? 

A parceria que nós temos com a Biotrab permite atribuir um certificado aos estabelecimentos que são glúten free, ou seja, totalmente isentos de glúten. Mesmo que vendam outros produtos, é garantido que ali podem comer pratos sem glúten. Além disso, também é garantido que ao longo do processo de tratamento desses ingredientes – confeção, manipulação das matérias primas, do produto já confecionado e do seu transporte – não há contaminação cruzada, que é o maior risco que existe para os celíacos.

Muitas vezes, os produtos em si não têm nenhum ingrediente com glúten, mas ao longo deste processo pode ocorrer uma contaminação. No caso dos estabelecimentos com certificado, não temos de nos preocupar. 

O espaço mais recente com esta atribuição é a gelataria GROM no centro de Lisboa. 

No caso da GROM não existe mesmo nada que contenha glúten – desde os cones às bolachas, tudo o que se vende é gluten free e não há qualquer risco de contaminação. Neste processo de certificação, por exemplo, até a comida que os colaboradores levam de casa, se eventualmente levarem, a maneira como eles a utilizam, como a manipulam, tudo é explicado no processo de certificação, para que não haja nenhum agente que venha do exterior que possa vir a contaminar. Facilita a vida do cliente, porque não tem de pedir para abrir uma caixa de gelado nova com receio que a colher para servir tenha sido contaminada ao tocar num gelado que tem glúten. 

Na prática, o que torna um gelado deste espaço diferente de outros? Estes produtos são diferentes de outros comercializados em espaços que vendem gelados sem glúten?

A segurança. Existem outros locais no país que vendem cones glúten free, mas existem outros problemas: o meu cone pode ser glúten free e até estar embalado num plástico, mas a cuba de onde vão tirar o meu gelado pode ter sido contaminada com uma colher que tenha servido, por exemplo, um gelado de Oreo. Se depois escolher um gelado de manga, o grande problema é que, quando tirarem o meu gelado, se calhar vão mergulhar a colher naquela água quente, para que o gelado deslize melhor. Nesse caldo, hão de estar migalhas da Oreo e outros produtos que têm glúten. Na GROM eu sei que não existe esse problema.

Em Portugal são 15 os espaços com certificado Gluten Free. Recorda-se do primeiro espaço a receber esta atribuição?

Acho que foi o restaurante Open, no hotel Santa Marta, aqui em Lisboa. Foi há pouco tempo, há uns cinco ou seis anos. 

Já me falou de algumas questões a ter em conta, mas quais os critérios para atribuição do certificado? 

Não sou técnica de qualidade e, por isso, temos uma parceria com uma empresa que trabalha nesta área. Tem que haver, para já, uma rastreabilidade das matérias primas – todas elas têm de entrar no processo de confeção com a garantia de que são isentas de glúten, porque não basta que sejam matérias sem glúten. Lá está: é preciso que ao longo do seu transporte, da sua transformação, não tenham sofrido contaminação. Todas as matérias primas têm de ter um certificado em como são gluten free. Depois, começa-se a entrar no estabelecimento. 

Como é que o espaço em si pode influenciar a certificação?

Desde a forma de armazenar, à forma como os alimentos são manipulados, confecionados, embalados, até como são entregues ao cliente, tudo isso tem que ser feito de modo a ser gluten free. Vamos imaginar um restaurante que vende produtos com e sem glúten: os sem glúten estão rastreados, mas durante a confeção a colher utilizada para a massa com glúten pode ser a mesma para mexer a que não tem. É isto que a certificação garante. Dou-lhe um exemplo: uma vez, num restaurante estrelado, fui jantar e avisei que era intolerante ao glúten. Trouxeram um cesto de pão e disseram: ‘este pão é do senhor, este é da senhora’, no mesmo cesto. E eu disse: ‘Não, a partir do momento, em que vêm todos no mesmo cesto, é todo do senhor’. Eles tiveram todo o trabalho a confecionar o pão, mas pela questão de transporte fizeram ali um erro que estragou tudo o que estava para trás. Além disso, fazemos análises periódicas e aleatórias ao estabelecimentos, sem aviso prévio.

São os espaços que vos procuram? 

Acontece das duas formas. Cada vez mais se fala na questão do sem glúten, não só por causa dos celíacos. Temos estabelecimentos que vêm até nós porque têm muitas solicitações dos clientes e começam a ter interesse nesta questão. Outras vezes somos nós que vamos ao encontro dos clientes. Se eu for a um restaurante que tem nas ementas assinalado o que contem glúten, percebo que existe o mínimo de conhecimento e vejo que é um restaurante em onde se pode implementar um programa de isenção de glúten. Vejo-me como uma embaixadora desta ideia. Na prática, qualquer celíaco deve ser embaixador desta ideia. Esta é a melhor maneira de garantir que um maior número de estabelecimentos estão certificados.

Que números existem sobre os celíacos em Portugal? 

Não existem números oficias porque não é uma doença de notificação obrigatória [doença que tem de ser comunicada às autoridades de saúde pública]. Sabemos que somos cada vez mais procurados, o que dá a entender que o diagnóstico está a ser mais eficaz. E isto está relacionado com várias coisas: a classe médica está cada vez mais alerta para a doença – e é preciso estar atento, porque nem sempre aparece de uma forma convencional e clara – e, por outro lado, a população está mais atenta ao assunto e procura um diagnóstico. Atualmente, os meios de diagnóstico são muito mais infalíveis do que eram há uns tempos. Apesar de tudo, ainda existe um longo caminho a percorrer: continuam a ser cometidos erros que atrasam o diagnóstico, como por exemplo dizer para retirar o glúten antes de o diagnóstico estar confirmado.

Li, de acordo com as informações da APC, que existem 15.000 celíacos diagnosticados em Portugal, mas estima-se que o número real seja entre 70 a 100 mil, o que representa uma taxa de casos por diagnosticar de 85%. Porquê esta discrepância? 

É uma diferença que existe no mundo inteiro. É o que se chama iceberg celíaco – a parte visível é muito menor que toda a parte que está submersa. Acontece porque a classe médica tem de estar mais atenta aos sintomas, porque esta é uma doença que não é fácil de diagnosticar e, muitas vezes, quando se revela já é tarde demais. Dos 15.000 celíacos diagnosticado em Portugal, muitos não fazem sequer dieta. Isto porque os próprios médicos não percebem a importância do cumprimento rigoroso da dieta. Há muita gente diagnosticada que fica exposta aos riscos de desenvolver doenças, riscos esses que seriam evitados caso a dieta fosse cumprida. Se o fizer, tem a mesma expectativa de vida de um cidadão comum.

E o que compõe essa dieta?

Grande parte do que está na roda dos alimentos está isento de glúten e não é preciso fazer grande sacrifício. Há um conjunto muito pequeno de produtos que devem ser substituídos por outros com o mesmo tipo de sabor, textura e comportamento.

Este número, os 15.000 diagnosticados, tem crescido de forma constante?

O número cresceu muito. Os médicos estão mais atentos, as pessoas mais atentas e os meios de diagnóstico são mais incisivos. Há muita gente que acha que é intolerante ao glúten porque fez um teste de farmácia e isso não serve para rigorosamente nada, serve para as pessoas gastarem algum dinheiro e para quem o fez ganhar algum dinheiro. Mas em termos de diagnóstico não serve. Pessoas celíacas são pessoas que foram diagnosticadas de forma correta, através do seu historial clínico, a sua sintomatologia, os marcadores que determinam a presença quase certa da doença e várias biopsias. 

Além de questões de saúde, há quem procure estes espaços por outras questões. Acha que os espaços Gluten Free estão na moda? 

Estão e ainda bem. Adoro essas pessoas, sou fã delas, porque são essas pessoas que fazem com que existam espaços a vender produtos sem glúten. Acha que alguém fazia um negócio para vender a dezenas de milhares de pessoas? Se se trata de um negócio que cresce constantemente, é porque efetivamente existem muitas pessoas a consumir sem glúten. Adoro a Victoria Beckham, o Djokovic. Eles consomem por moda, para emagrecer, o que seja. Quantas mais pessoas assumirem estes hábitos, mais produtos existirão para mim. 

Não sente que esta moda desvaloriza o problema de saúde?

Não desvaloriza nada, até nos dá oportunidade de falar sobre ela. Há espaço para todos. Até dá para corrigir algumas ideias sobre o assunto, porque, na verdade, são ditas muitas asneiras. Por exemplo, a ideia de que retirar glúten da dieta ajuda a emagrecer é mentira. Se eu substituir tudo o que consumi com glúten por produtos sem esta componente, eu vou engordar. Os produtos desenvolvidos para substituir produtos com glúten são muito mais calóricos do que qualquer equivalente com glúten. Têm mais gordura, em geral mais açúcares, tem tudo para engordar. Só é verdade se eu deixar de comer massa, pão… Aí sim, eu vou emagrecer. Mas mesmo que digam uma série de asneiras como esta, é-me indiferente: o que eu quero é que se fale sobre este assunto.

O facto de as pessoas procurarem este tipo de espaços ou produtos sem que exista um problema de saúde pode desencadear uma intolerância? 

É obvio que se eu evitar certos alimentos de forma consistente e durante um longo espaço de tempo, é normal que o organismo diga ‘há muito tempo que não te via por cá’. Não lhe sei responder a isso, nem sei se há estudos que comprovem isso. É verdade que nos entupimos com coisas que contêm glúten – qualquer pastelaria só tem bolos para comer e glúten por todo o lado. Se as pessoas abusarem deste tipo de alimento vão-se sentir mal. O culpado é o glúten? É parte do vilão, mas há outros produtos que não têm nada a ver com o glúten e que se forem retirados da alimentação também ajudarão a fazer com que nos sintamos melhor.

Vão atribuir mais certificados brevemente? 

Quando houver essa possibilidade. Seguramente que há projetos em curso. Além disso, estão sempre a aparecer novos espaços, felizmente.