Confesso: sou mais papista que o papa. Peta fosse obra minha e não descansaria enquanto não banisse da cultura popular todo e qualquer provérbio ou expressão de gíria em que os animais fossem protagonistas apoucados. Não descansaria enquanto não banisse do vidro traseiro dos automóveis os cãezinhos que mexem a cabecinha ao sabor da trepidação. Depois, muito mais peta que os petistas, iria riscar de todos os livros os nomes desses predadores do prestígio animal que se dão pelos detestáveis nomes de Fedro, Esopo e La Fontaine, para apontar primeiramente o dedo aos lá de fora. Descairia depois o olhar até o nosso mais antigo cronista do género, um tal Fernão Lopes, passando por esse famigerado Sá de Miranda, que passa por grande poeta e, afinal, fez um esboço de luta de classes entre os ratos, ou aquela desfaçatez da formiga ante a reivindicação da cançonetista cigarra, negando-lhe sequer o ordenado mínimo nas misérias do inverno, tal como o conta Diogo Bernardes. Pois, e um desconhecido frei João dos Santos que exibe nos seus papéis impressos um elefante com uma ramada descomunal? E essa dama pesporrente e arrogante armando-se em pedagoga querendo que um papagaio se portasse como qualquer dos seus amantes? O senhor Serrão de Castro o conta, mas deste tomou conta a benemérita Santa Inquisição!
Ah, e aquele Filinto Elísio que zomba dos problemas oftálmicos de uma pobre toupeira? E para que é que a senhora Marquesa de Alorna fala de sapos, pirilampos, cucos, leões e raposas, apertando-os nos corsets dos seus versos ou esse bebedolas do Bocage, de tantas e malcriadas histórias com humanos, desce aos porões para denunciar um macaco que declama e os jogos entre leões e porcos, corvos e rouxinóis, como se valesse a pena pesarmos o que se diz deste e daquele animalzinho!
Glória agora ao senhor Garrett que trata de galegos e diabos, poupando os animais ao seu sestro poético! Bem, e o que fazer com Francisco Xavier de Novaes pela maneira como trata o burro voador do monsieur Poitevin? Será preferível o burro flautista do senhor visconde de Santa Mónica? Ou então a gralha depenada deste mesmo senhor educador de príncipes reais?
E para que é que o senhor Rodrigues Lobo nos impinge a peta de um burro alguma vez ter vestido uma pele de leão? Não tarda que se invective o senhor Junqueiro por designar como ambicioso um simples pinheiro…
É que o próprio autor de “Os Meus Amores” não escapa a tirar a cauda a uma raposa, humilhando-a a exibir-se assim. Mas, e um tal Acácio de Paiva, que engendrou aleivosamente as cartas do peru dos olivais, que descreve o seu caminhar para o patíbulo, bêbedo como um carro, pronto a ser recheado. Valha-nos, por fim, o Fernando Pessoa que nos conta a humanização da reacção de um burro perplexo por não conseguir atravessar um rio. E assim, de peta em peta, vemos como expulsar do meio dos dramas humanos uns quantos animalejos à conta das fabulas que um velho dicionário, que para aqui tenho, diz ser divindade alegórica, filha do Sono e da Noite. Diz-se que desposara a Mentira, e que o seu continuo entretenimento era contrafazer a História. Representa-se com máscara no rosto e magnificamente vestida.
No entanto, se vos disseram que esta peta está vestida, não acreditem, que vai nua como qualquer proverbiozinho, adágio ou anexim, apólogo ou qualquer outra espécie que repugne a aqueles a quem um animalzinho seduz para a vida. Pois o grande e dramático Sebastião José não torcia o nariz às touradas? E estará tudo mais ou menos dito.