“Dois soldados/ passam/ de mãos dadas// como amantes// Não tardará/ a ronda/ a procurá-los// como cães// Soldados/ de mãos dadas/ têm nome// Não chegarão a ver as montras/ e o rio/ os dois soldados// e a sentar-se/ num banco/ de jardim// A ronda/ não tardará/ a alcançá-los”. É o poema “60”, de António Reis, poeta além de cineasta, reeditado recentemente pela Tinta da China em “Poemas Quotidianos”, pela primeira vez publicado em 1957. Poema que João Pedro Rodrigues levou para a conversa “Rever António Reis e Margarida Cordeiro”, que no Porto/Post/Doc, que terminou ontem, no Porto, regressou com a retrospetiva “Paisagens do Tempo” à obra de uma dupla singular na história do cinema português que, apesar de de dificílimo acesso, marcou de forma determinante as gerações seguintes. Sentado à mesma mesa, Manuel Mozos há de os enumerar. João Pedro Rodrigues, Pedro Costa, Miguel Gomes, João Salaviza, numa lista que não se fica por aqui.
Ouvi-lo de João Pedro Rodrigues, que pertence à última geração de cineastas que, na Escola de Cinema de Lisboa, tiveram António Reis como professor, é ter diante dos olhos as cenas iniciais do seu “Morrer Como Um Homem” (2009). Mas João Pedro Rodrigues vai mais atrás, ao seu primeiro filme, “O Pastor”, filme de escola ainda. “Quando fui aluno dele estava a filmar o ‘Rosa de Areia’ [1989]. Mostrava-nos os argumentos, que tinham desenhos com as cores e todos os personagens, a colocação das coisas já muito determinada. Ele falava muito da vida das formas. Mas nunca nos mostrou os poemas. Só descobri a poesia dele quando no ano passado foi reeditada pela Tinta da China.” E questiona-se: “Será que ‘O Pastor’ teria sido o meu primeiro filme se tivesse lido a poesia de António Reis e o surpreendente poema número 60? Terei eu sonhado a vida toda com esta poesia?”
A conversa acontece antes da projeção de “Ana”, de 1982. Na véspera, tinha-se assistido a “Trás-os-Montes”, estreado em 1976 depois de, em plena revolução, o casal de ter partido para Trás-os-Montes, e a um desconhecidíssimo “Painéis do Porto” bem anterior: de 1963. Realizado por António Reis com César Guerra Leal por encomenda da Câmara Municipal do Porto. Entre João Pedro Rodrigues e Manuel Mozos, que além de realizador é arquivista do Arquivo Nacional das Imagens em Movimento (ANIM), a poeta, cineasta, dramaturga e letrista Regina Guimarães, a digerir ainda a projeção da véspera: “Foi fantástico para mim ver ontem a sala com tanta gente porque a dada altura a impressão que dava era que toda uma geração tinha sido privada de ver os filmes do António Reis — a não ser que na escola alguém de maneira pirata mostrasse os filmes. Quem não tem a sorte de ter um professor que se interesse pode passar completamente ao lado desta obra. A presença das pessoas ontem na sala deu-me a entender que foi uma batalha ganha e foi muito bonito.”
Nunca antes digitalizada nem editada em DVD, depois da morte de António Reis e dos entraves que Margarida Cordeiro encontrou para dar seguimento a uma carreira de realizadora — quando Reis morreu, em preparação estava uma adaptação ao cinema de “Pedro Páramo”, na qual Manuel Mozos trabalhou, que Margarida Cordeiro tentou concluir, mas sem sucesso — também o trabalho que estava para trás permaneceu praticamente inacessível. Exceção para as retrospetivas que vão sendo feitas um pouco por todo o mundo e algumas projeções pontuais na Cinemateca. “Jaime” (1974), de António Reis, e “Trás-os-Montes”(1976), “Ana” (1982), e “Rosa de Areia” (1989), estes três já correalizados com Margarida Cordeiro.
“Trabalhei na montagem do ‘Rosa de Areia’ e percebi muito bem o que era um trabalho de um casal, de um par, de duas cabeças que trabalham em conjunto. Mas no sistema português infelizmente a Margarida nunca mais teve hipótese, depois do falecimento do António, de poder continuar uma obra que julgo que manteria no espírito que tinha com o António”, nota Manuel Mozos, que se interroga sobre o que o cinema português poderia ter sido se o início dessa cinematografia não tivesse sido interrompido. “É uma daquelas interrogações que se podem colocar no cinema português: sem este fim, o que seria o resto? Ou o que poderia permitir ao cinema português ser? O facto de a Margarida nunca ter conseguido continuar o projeto que tinha com o António para o ‘Pedro Páramo’ tornou-se, não direi desastroso, mas muito limitativo para o que poderia ter sido o cinema português. Como a morte de José Álvaro Morais ou de João César Monteiro.”
A par disto, Mozos lamenta a ausência de divulgação de filmes como estes a que o Porto/Post/Doc regressou no Teatro Rivoli ao longo dos últimos dias. De sala cheia. Para os rever, mas ver também pela primeira vez. A tal geração a que se referia Regina Guimarães que de António Reis e Margarida Cordeiro terá assistido a uma cópia de qualidade para lá de má que alguém partilhou no YouTube e que em títulos ainda mais inacessíveis como “Ana” ou “Rosa de Areia” terá encontrado, num processo inverso, qualquer coisa dos filmes de Pedro Costa, Miguel Gomes ou João Pedro Rodrigues que cresceu a ver. Do “Farpões Baldios” com que Marta Mateus se estreou na realização em 2017.
“Há a limitação de não haver programações que permitam que os filmes sejam realmente divulgados e vistos. Apesar do trabalho de cineclubes, de certas associações e certas universidades e escolas e de algumas salas que têm esse cuidado, há um determinado cinema que passa a ser invisível”, lamenta ainda Manuel Mozos que, a uma uma pergunta da assistência sobre para quando a edição em DVD destes títulos que acabam de ser restaurados e digitalizados e assim, com o apoio da Cinemateca Portuguesa, foram exibidos no Porto/Post/Doc, responde que não estará certamente para tão breve quanto se deseja.
“O problema é que muitas vezes os direitos bloqueiam a possibilidade de os filmes terem outra visibilidade e há aqui questões que impedem realmente a visibilidade dos filmes noutros formatos”, responde. “Há aqui muita coisa em jogo. Por exemplo, o João Pedro está interessado na divulgação da sua obra e está a confrontar-se com problemas. Outra coisa é os próprios realizadores, por questões com produtores, por questões dos seus próprios princípios, impedirem também a visibilidade dos filmes. Portanto isto não tem só a ver com as tentativas do ANIM e de outros preservarem e possibilitarem a visibilidade dos filmes. Há também um outro mundo que impede que eles tenham essa visibilidade e que às vezes parte dos próprios autores.”