Num ensaio com o título "Tudo Cheio de Deuses", o poeta grego Yorgos Seferis conta-nos como, certa vez, enquanto se aborrecia numa sala de espera, deu pelo seu pensamento a adregar nas páginas de uma revista ilustrada norte-americana de ampla divulgação, e como lhe causou uma certa perplexidade um anúncio a toda a página e a cores, que representava a fachada ocidental do Pártenon. "Do lado direito do quadro, em plano secundário, como uma visão irreal, dois jovens turistas apoiavam-se, diante de dois copos cheios, sobre uma parte de coluna que lhes servia de mesa. Este reclame proclamava: ‘Quanto mais souber de arquitectura da antiguidade, mais gosta da Acrópole’", e adianta que "a finalidade desta encenação era divulgar uma bebida anglo-saxónica". Se o poeta reconhece o achaque que lhe causa a forma como a ‘turistocracia’ moderna sufoca a nossa época, não deixa de reconhecer o valor que há no esforço para fortalecer os laços com os antigos, nomeadamente transmitindo o conhecimento "dos nossos monumentos da antiguidade". O anúncio atrás referido demonstra, segundo ele, "a que distância está o presente de hoje, este que absorvemos com todos os poros do nosso corpo, desses passados profundos".
Neste revelador excerto do ensaio traduzido por Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratisinis, e inserido na recolha "Poemas escolhidos" (Relógio d’Água), Seferis questiona-se que benefício retirariam aqueles dois jovens, em termos de desfrute da Acrópole, "se despejássemos de repente na cabeça deles certos pormenores arquitectónicos um pouco mais específicos embora bastante conhecidos". Depois de elencar alguns aspectos que evidenciam a elegância transtornante daquela arquitectura – uma série de aspectos "invisíveis para nós (os de hoje precisaram de fazer medições minuciosas para os confirmarem)", mas que "eram visíveis aos olhos dos homens daqueles tempos" –, Seferis toma o anúncio como mais outra evidência de como a nossa "era tecnocrática" desses dados sensíveis apenas colhe um valor de "superstição", empurrando "o homem a acumular informações e pormenores, mais ou menos desconexos, sobre qualquer coisa". E conclui: "E pergunto-me se por acaso não me emocionam mais os homens de outros tempos, cujos conhecimentos podiam causar-nos hoje hilaridade, mas que provavelmente tinham sentidos mais próximos do equilíbrio que ansiava ver de vez em quando nas almas dos que estão em meu redor."
Na sua 5.ª edição, o Fórum do Futuro escolheu o sugestivo título "Ágora club". E para um ambicioso "festival do pensamento", que decorreu de 4 a 10 de Novembro, chamou mais de meia centena de personalidades de todo o mundo, desafiadas a reflectir a contemporaneidade na relação que estabelece com a presença e memória que nos prende à Antiguidade. Assim, este fórum, acolhido anualmente pela cidade do Porto, vem ganhando terreno e assumindo um carácter exemplar pela forma como consegue promover um encontro público que, desde a programação aos objectivos assumidos, segue uma estratégia criativa e, assim, supera a lógica dos "eventos" que se esgotam na sua componente promocional, não conseguindo senão diluir-se na inconsequência da cultura em regime espectacular.
As sessões para que o público foi convocado durante aquela semana mostraram ter uma natureza bastante diversa de tudo o que, à boleia da promoção da turistocracia moderna, subalterniza a cultura e o pensamento ao entretenimento, quando não se servem meramente daqueles valores para promover, com uma regularidade extenuante, festivais que reduzem o debate público a um desfile incessante dos tagarelas que ocupam o espaço público sem oferecer uma perspectiva esclarecida a partir de um qualquer saber específico. Ora, ao buscar o seu modelo na ágora grega, o Fórum do Futuro chamou ao Porto uma série de figuras de primeiro plano num cruzamento de disciplinas entre as artes visuais, a filosofia, a política, a arquitectura, a literatura, etc. Nas palestras, debates e performances que se concentraram, na sua maioria, no Teatro Rivoli, marcaram presença personalidades internacionais como o arquitecto japonês Toyo Ito (Pritzker em 2013), o artista plástico francês Christian Boltanski, a escritora canadiana Margaret Atwood, o filósofo e curador espanhol Paul B. Preciado, o sociólogo e filósofo italiano Maurizio Lazzarato e o artista plástico libanês Walid Raad entre tantos outros.
Tudo começou a desenhar-se na altura em que Rui Moreira preparou a sua candidatura à Câmara Municipal do Porto, tendo a seu lado Paulo Cunha e Silva, que assumiria a direcção do pelouro da cultura, metendo os papéis de "divórcio" face ao que o seu então adjunto, Guilherme Blanc, caracteriza como "12 anos de desertificação da política cultural", em que o município, sob a liderança de Rui Rio, renunciou às suas obrigações no que toca a promover, apoiar e programar iniciativas culturais. O sucessor de Paulo Cunha e Silva tinha 28 anos quando deixou o Barbican Center, em Londres, e regressou ao Porto, aceitando o desafio para integrar aquela equipa que se propunha reconectar a cidade com a prática cultural internacional.
Como Blanc conta ao i, nas primeiras três edições do Fórum do Futuro, acompanhou Cunha e Silva, programando com ele o festival. Com a sua inesperada morte, em 2015, houve um fundado receio quanto ao futuro do pelouro da cultura da Câmara Municipal do Porto e do ambicioso projecto que fora delineado para que a cidade, rapidamente, se impusesse no plano cultural. Assessorado por Guilherme Blanc, Rui Moreira optou, ele mesmo, por dar continuidade àquela "viragem absoluta no modo de entender a cultura a partir do poder autárquico". Nas palavras do jornalista Valdemar Cruz, depois de os dois terem tido tantas conversas sobre a cultura na cidade, essa opção não apenas assinalou a importância do papel dado à cultura na definição de uma política cosmopolita, mais ainda cumpriu com o sentido de homenagem: ninguém, a não ser o presidente, poderia substituir Paulo Cunha e Silva.
Guilherme Blanc, comissário do Fórum do Futuro, reconhece que a convivência com o anterior adjunto cultural foi muito importante para ele do ponto de vista não só profissional como pessoal. "O Paulo era um homem brilhante", vinca, recordando que teve a capacidade de se abalançar para a transformação dos hábitos culturais da cidade a partir de um ponto muito difícil – "porque estava tudo por construir".
Blanc reconhece, no entanto, que mesmo que o anterior executivo tenha prescindido de uma intervenção cultural, foram as iniciativas cívicas que, nesses anos, garantiram que a cidade não caísse nas trevas culturais, beneficiando de "projectos excepcionais". "Tínhamos Serralves e a Casa da Música a funcionar, e inúmeros agentes a trabalhar arduamente em projectos de enorme validade. O que falhou foi a política municipal. Evidentemente, uma coisa não se esgota na outra. A cultura da cidade não se confunde com a política cultural do município. A política municipal opera como uma força mediadora. É só isso, e é isso que deve ser."
O Fórum do Futuro insere-se no esforço da autarquia para "reactivar a consciência cívica no que toca à importância da cultura, da sua prática e do seu lugar na cidade", acrescenta Blanc, que entende que "a figura de um curador, um programador cultural – e, no meu caso particular, trabalhando para a Câmara Municipal – não pode descontar a dimensão pública". "Um aspecto chave", sublinha, "é perceber como é que estas coisas podem funcionar num espaço comum, numa lógica de diálogo, de negociação e de convívio". E conclui que, "para isso, um programador deve ser uma pessoa informada, que promove uma visão autoral, evidentemente, em face dos discursos contemporâneos, tendo em conta como podem ser organizados e apresentados, sendo direccionados a determinados públicos".
Se este festival soube furtar-se à reinante jactância de tudo o que, em nome da cultura, não consegue libertar-se da película aderente dos modelos de propaganda tão difusa quanto inescapável, isso deve-se à estratégia de sistematicidade de uma programação pensada como uma sucessão de investidas, com a Antiguidade Clássica e o cânone ocidental a serem encarados como fundações inseguras, algo movediças, nas quais assenta a cultura contemporânea. Trata-se, portanto, de um festival em que cada sessão marca um momento do cerco. E isto ficou claro quando, na apresentação de Boltanski, no dia 8, o curador de Serralves Ricardo Nicolau frisou como em face da obra daquele artista plástico, e à semelhança do que acontece com os discursos mais férteis no questionamento do Tempo, "o passado e o futuro são a mesma coisa".
Questionado sobre o que pensa deste entendimento, Guilherme Blanc diz ao i que o partilha na totalidade: "Por isso é que fiz esta proposta de programa, que se dedica a pensar o tempo – de que forma é que este não é uma matéria estável, mas uma substância que ciclicamente nos confronta com as nossas questões mais fundacionais. Temos a necessidade de nos confrontarmos com essas bases, e, obviamente, isso acontece mais em períodos de maior incerteza, quando as pessoas sentem a necessidade de se reinterpretar." E adianta: "O Ocidente está-se a reinterpretar, está tentar compreender-se. Isto motivado por uma série de circunstâncias: económicas, socio-culturais, políticas, cívicas, etc."
Para o curador, este exercício de reinterpretação das nossas bases, mitos fundadores, cânones, é impossível, hoje, ser praticado sem que nos coloquemos em causa: "E isto passa também por uma certa necessidade de problematizarmos a hegemonia do nosso cânone". Ou seja: "É também uma forma de nos pormos em causa através de uma abertura às outras antiguidades, a outros cânones. Acho que não conseguimos pensar hoje a nossa cultura, a própria identidade europeia, sem nos confrontarmos com essa amplitude cultural e ontológica. Foi esse o propósito deste fórum", remata.
No ensaio que abre o livro "A Benefício de Inventário" (editado entre nós pela Difel, com tradução da Rafael Gomes Filipe), Marguerite Yourcenar debruça-se sobre a "História Augusta", essa compilação que abrange um período de trezentos e cinquenta anos que decorrem até à queda de Roma, e em que "seis historiógrafos fizeram alinhar vinte e oito retratos de imperadores, sem contar os de alguns pretendentes ao trono e de alguns Césares (título que significa aqui herdeiro presuntivo) falecidos prematuramente".
A obra, cuja redacção varia entre o ano mais recuado de 284 e o mais tardio de 395, começa com Adriano e os seus sucessores imediatos, Antonino, Marco Aurélio, "isto é, nos mais belos tempos da paz romana, no apogeu de um mundo que ignorava estar tão perto do seu fim", e termina "com o obscuro Carino, numa hora crespuscular do século III". E se se mostra útil mencionar aqui este ensaio, é pelo facto de, nele, Yourcenar nos recordar que, "se, de todas as Histórias que a memória humana registou, a de Roma fez reflectir mais filósofos, sonhar mais poetas e invectivar mais moralistas, tal deve-se em parte ao génio de um pequeno número de historiadores romanos (e a um par de historiadores gregos) que contribuíram para prolongar até nós a recordação e o prestígio de Roma". Por outro lado, a autora de "Memórias de Adriano", faz notar que, dos séculos que viram a derrocada do Império, e que a "História Augusta" compreende, "dispomos apenas de testemunhas medíocres, não só parciais (elas são-no sempre) mas crédulas, convencionais, confusas, muitas vezes excessivamente ligeiras ou exageradamente supersticiosas, trabalhando quase às claras com objectivos de propaganda, reflectindo no seu cérebro e na sua linguagem o fim de uma cultura, mas ainda assim apaixonantes porque a sua mesma mediocridade lhes confere uma espécie de veracidade, faz delas os intépretes qualificados de um mundo agonizante".
A leitura crítica de Yourcenar é relevante aqui para se traçar uma fronteira que representa bem o conflito sobre o qual a contemporaneidade hoje se debate, como numa guerra travada em inúmeras frentes entre os melhores intérpretes da vertiginosa era em que vivemos, e na qual vigora este regime de historicidade marcado pela ditadura do presente, da urgência e do imediatismo, e essas testemunhas patéticas que só apaixonam pelo modo como, na sua mediocridade, se confundem com o próprio fascínio da aceleração e da perda da razão, dos sentidos, até os seus discursos se tornarem quase comovedores enquanto urros e uivos agonizantes. Estas testemunhas são, por isso, simultaneamente, os cúmplices e as vítimas da catástrofe de um tempo condenado à cegueira do presente, incapaz de ver o que está antes ou além de si.
Se hoje, como Yourcenar assevera, "estamos melhor informados sobre a maneira como uma civilização acaba por exaurir-se", se os melhores intérpretes desta nossa época estão bem conscientes de que "os males de que se morre são mais específicos, mais complexos, mais lentos, às vezes mais difíceis de descobrir ou definir", isso resulta da capacidade de "identificar aquele gigantismo que não passa de falsificação malsã de um crescimento, o desperdício que leva a acreditar na existência de riquezas que já não se têm, a abundância tão depressa substituída pela escassez à mínima crise, os divertimentos organizados a partir de cima; aquela atmosfera de inércia e de pânico, de autoritarismo e de anarquia, as reafirmações pomposas de um passado grande no meio da actual mediocridade e da presente desordem, as reformas que não passam de paliativos e os acessos de virtude que só através de purgas se manifestam; o gosto do sensacional que acaba por fazer triunfar a política do pior, os poucos homens de génio mal secundados, perdidos na multidão dos habilidosos grosseiros, dos loucos violentos, dos honestos desastrados e dos fracos prudentes". E, assim, Yourcenar conclui a sua reflexão, afirmando que "o leitor moderno está em sua casa na ‘História Augusta’". E teremos nós, hoje, e em face da actual conjuntura, as forças para negar a catastrófica evidência de como este diagnóstico se nos aplica?
É curioso, de resto, como a edição deste ano do Fórum do Futuro coincidiu com a realização da Web Summit, esse sensacional evento que se apresenta como o maior de tecnologia, empreendedorismo e inovação da Europa e que, pela terceira vez, se realizou em Lisboa. O paralelismo que se possa traçar entre as duas iniciativas só serve para fazer ressaltar contrastes grotescos. Pois se na Web Summit há igualmente um investimento enorme dos poderes locais e até centrais – recorde-se que o evento custou ao país 11 milhões de euros por ano (110 milhões até 2028) –, serviu como plataforma aos nossos governantes para desfilarem, subirem o palco, partilhando da mesma visão eufórica desse futuro que se projecta menos como um horizonte de expectativas culturais e mais como uma utopia tecnológica, um evento que se distingue até, entre nós, como um espectáculo de propaganda do regime.
É impossível abstrair-mo-nos de como entre este e o Fórum do Futuro se vêm representadas visões chocantemente contrastantes na forma de se equacionar o futuro. Se ali o futuro é sondado e se anuncia de forma espectacular, com oradores vindos de todo o mundo mas recebidos num evento exclusivista – com preços de entrada proibitivos para a larga maioria dos portugueses, o que leva a que a maioria das pessoas só colha os rumores e os despojos, além de alguma receita turística –, o Fórum do Futuro tem como valor capital a ideia de acesso universal à sua programação. Os portuenses são convidados a participar nele, ao passo que o Web Summit faz os lisboetas sentirem-se marginalizados. Esta leitura foi a que fizemos a Guilherme Blanc, que não se esquivou à comparação entre as duas propostas.
"Foi uma coincidência de facto", refere, lembrando que o Web Summit surge num momento posterior ao Fórum do Futuro, que já acontecia nestas datas. "É uma mera coincidência, mas é inevitável traçar-se um paralelo entre estes dois modelos radicalmente diferentes. O WebSummit tem muitíssimo mais atenção pública do que o Fórum, mas é também um tipo de atenção que não nos interessa. Não é do que estamos à procura com este projecto. Procurámos constituir um espaço de reflexão pública. Este ano chamámos-lhe Ágora, mas sempre foi isso o que pretendemos: uma plataforma de reflexão, de acesso livre, de discussão pública. Um evento em que possam participar jovens, pessoas de todos os estratos, independentemente das suas condições financeiras, independentemente do seu background cultural e do seu nível de formação. E, de facto, conseguimos uma mistura de públicos muito grande. É este o modelo cultural e político em que acreditamos. E um modelo que abre caminho a um determinado tipo de pensamento que nos parece fundamental para nos compreendermos hoje."
Até os custos de uma e outra iniciativas são expressivos da enorme diferença entre estas duas visões. Pois se cada português teve de dar um euro para que Lisboa tivesse a honra de hospedar o Web Summit, o Fórum do Futuro custou uma ínfima fracção disso: 230 mil euros. Ou seja, quase 48 vezes menos. O que quer dizer que, pelo mesmo valor, o Porto não teria dificuldade em tornar o Fórum um evento que se prolongasse pelo ano inteiro.