Erica Malunguinho. O resultado das eleições “é um ensaio para a barbárie”

Erica Malunguinho. O resultado das eleições “é um ensaio para a barbárie”


O país que elegeu Jair Bolsonaro como o seu próximo presidente foi o mesmo que votou para a maior renovação em décadas da Câmara dos Deputados e do Senado. Em São Paulo, Erica Malunguinho, que recebeu o i no quilombo urbano que fundou, foi a primeira mulher transexual eleita para deputada estadual


Chegou a São Paulo, vinda do estado de Pernambuco, há 15 anos. Na Barra Funda, o berço do samba paulista, fundou o Aparelha Luzia, um espaço de apoio à produção artística e intelectual da resistência negra. No coração da maior cidade do Brasil, um quilombo urbano, à semelhança das comunidades em que historicamente se refugiaram e organizaram os escravos que fugiam para se libertar do jugo do branco opressor. Pelo PSOL, Erica Malunguinho foi a primeira transexual eleita para deputada estadual em São Paulo. No Aparelha Luzia, recebeu o i para uma conversa sobre a luta que o povo negro brasileiro tem ainda pela frente.

 

Fale-me um pouco sobre esta ideia de quilombo urbano a que deu forma e espaço com a criação da Aparelha Luzia.

A Aparelha Luzia é um lugar que começa antes dessa diáspora negra. É uma continuidade da experiência do estar no mundo das populações negro-africanas e ancestrais das Américas. Tentar restabelecer os nossos elos com as nossas tecnologias sociais, com as nossas formas de elaborar o mundo, de pensar arte, estética, medicina, arquitetura, de pensar sociabilidade, afeto… A Aparelha é um reflexo, uma continuidade dessa vida e dessa historicidade ancestral, e que resulta hoje obviamente como um lugar de resistência. Mas isso não é normal, naturalizar essa resistência. Existe resistência porque estão negando a nossa existência a todo o momento. Esse lugar acaba se tornando um lugar de resistência por conta da gramática que é utilizada para a gente entender os grupos sociais. Mas ele é isso: uma continuidade, um lugar que diz sobre o processo de elaboração das inteligências e das lutas negras neste momento histórico para pensar um futuro, um amanhã, um horizonte negro. 

Quando fala neste momento histórico fala no momento particular que vive o Brasil?

O que quero dizer é que este lugar é o resultado do conjunto de negociações que a sociedade foi articulando de forma violenta em relação ao nosso povo, desde o projeto de colonização e de toda a ideologia escravagista. Este lugar é uma síntese, uma compreensão, de tudo isso que aconteceu, pensando no que pode vir a ser quando não precisarmos pensar na opressão. Aqui estamos dispostas, aqui nos destinamos como seres livres, emancipadas e independentes. 

A escolha desta zona de São Paulo foi uma escolha política?

Esta região, da Barra Funda, é o berço do samba paulista e sempre foi um território negro. O facto de ser um lugar com moradores de rua e usuários de crack também diz respeito ao nosso posicionamento político de estar aqui. É exatamente a partir desses agentes e desses seres transformadores que foram colocados em condição de exclusão que a sociedade deve começar e repensar os seus próximos passos. 

Existe na sociedade brasileira como um todo uma consciência real desse negar de existência de que fala?

Não sei que nível de consciência se pode dizer que a sociedade brasileira tem. O que sei é que existe uma prática compulsória de relações de opressão, de apagamentos e de genocídio de determinados grupos e que essa prática habita o consciente, a ordem, o sistema. Não sei que lugar de consciência poderá haver para pensar nesses entraves, mas sei que a sociedade brasileira reproduz, de forma ideológica, os lugares que geram esses entraves. A sociedade brasileira entende que existem problemas. Sociais, económicos, todo o mundo entende isso porque a gente vê a pobreza, a violência e todos esses processos. Só que entendem-se esses problemas apenas como o problema em si e entender esses problemas sociais e económicos do Brasil significa entender a História, a ideologia, a mentalidade escravagista, colonialista do ocidente europeu – aqui, foi Portugal, mas Espanha também, a França – e a mentalidade eurocêntrica que invade ideologicamente estes territórios e faz com que o arranjo das sociedades se modifique completamente. No Brasil especificamente, a gente só consegue entender os problemas se entender que isso está baseado num fundamento de raça. O que faz esse território ter esses problemas é a diferenciação entre pessoas brancas e não brancas.

É uma questão de raça antes de ser uma questão de classe?

A classe é uma determinação posterior ao fundamento de raça. Quando Portugal, que achava talvez que isso daqui era do tamanho de uma ilha, de uma praia, ou do tamanho do próprio país de vocês, se deu conta de que isso daqui era enorme e viu que não iria conseguir ocupar da forma que estava pensando e espanhóis e holandeses começam a invadir o território, Portugal manda buscar os considerados subcidadãos, os que nem eram considerados cidadãos em Portugal – presidiários, as órfãs portuguesas também – para habitar esse território chamado Brasil e ofereceram terra, trabalho, etc. Esses sujeitos e sujeitas que para os próprios portugueses não eram considerados cidadãos encontram aqui o estatuto de cidadão pelo facto de serem brancos. E os povos índios e pretos da diáspora africanos continuam nos processos de desumanização e apagamento cultural. É este fundamento que desenrola todo o processo pós-colonialista no Brasil.

E que continua até hoje.

Continua. Pensar que o Brasil tem problemas na educação, na saúde, na moradia e na segurança pública, essas coisas não funcionam porque atendem [dizem respeito] a gente que é preta e que foi empobrecida. A maioria da população brasileira empobrecida e que arca com o ónus de toda essa sociabilidade doente são pessoas negras. Pretas e indígenas. É efetivamente sobre raça que se está falando. Não é a pobreza, é a condição de pobreza em que algumas pessoas foram colocadas.

E qual é o caminho agora?

Ele já está em curso. Ele se inicia desde [o tempo em] que as mulheres negras rasgavam seus vestidos na travessia transatlântica para construir as abayomi, as bonequinhas para as crianças brincarem durante esse trajeto, desde a fundação do candomblé, a religião do panteão africano aqui dentro desse território, dos próprios quilombos, da preservação dos territórios indígenas. Isso já se iniciou. O que temos a fazer agora é a comunidade branca entender que deve ao povo preto uma reparação. Falo do lugar de fala, do protagonismo, de a comunidade branca potencializar económica e politicamente esses projetos que estão comprometidos com as transformações. Acho que isso já são muitos inícios e acredito que as pessoas que estão com as escutas abertas e estão praticando têm um papel importante nisso. Porque a luta anti-racista e anti-opressão é uma luta de todes [sic]. As pessoas estão entendendo isso e é preciso entender cada vez mais que é necessário produzir práticas que quotidianamente estejam voltadas para a destruição dessas estruturas de opressão: ceder a fala, o protagonismo, oferecer trabalhos – bons trabalhos, não os trabalhos de agenciamento, mas lugares de decisão.

Nestas eleições vimos vários deputados que com eles trazem não apenas mais como novas representatividades serem eleitos. Mas a propósito disso dizia a Leci Brandão há dias aqui em São Paulo que estava farta de ouvir dizer “a primeira” qualquer coisa eleita. Num país em que mais de metade da população é negra, essa população continua muito longe de estar representada no poder político.

Os movimentos de preservação da existência, que chamam de resistência, sempre estiveram em atividade. As eleições de muitas mulheres negras – a Bahia conseguiu eleger a primeira deputada negra da história da assembleia legislativa da Bahia, o que é um absurdo – diz respeito à articulação, à mobilização e à organização do povo negro. É absolutamente isso. Óbvio que fomos eleitas com votos de pessoas brancas também, mas tudo isso que aconteceu e que a comunidade branca que votou em nós também compreendeu, são coisas que vêm sendo cultivadas no decorrer dessa historicidade. Acho que nunca deu, mas que agora dá menos ainda para negar a nossa existência. As cisões estão colocadas, o povo preto está cada vez mais organizado e mais articulado, estamos demarcadas politicamente como grupo participante, escrevente e protagonista da nossa narrativa. Não há como fechar os olhos diante disso. Se fechar os olhos, ficará com os olhos fechados, numa cegueira tremenda em relação à realidade. Mas isso precisa se expandir mais, porque ainda é muito pouco, é pouquíssimo.

No ponto a que o Brasil chegou, o caminho daqui para a frente não seriam fácil com nenhum dos resultados da eleição para presidente. O discurso de ódio que saiu às ruas, tudo o que saiu debaixo do tapete ao longo dos últimos meses já não se apaga. Com Jair Bolsonaro como presidente, que futuro adivinha?

O que tenho a dizer é que continuaremos em luta, que estaremos em luta, como sempre estivemos. Obviamente que um cenário com Haddad seria mais positivo porque haveria uma possibilidade de escuta, de diálogo, uma possibilidade de cobrança e de um compromisso, facto que não acontecerá com o outro lado. Iremos romper todos os tratos civilizatórios já construídos até agora. Haverá um rompimento total. E isso significa dizer que não haverá mais critérios para a barbárie. O nosso povo já conhece a intervenção militar, já conhece o genocídio, o silenciamento, o nosso povo já conhece a tortura. Até hoje. E isso vai se intensificar. Só que não tem volta. A gente continuará em luta e obviamente que, dentro de uma lógica sistémica, a violência que bate, ela volta para o universo de uma outra forma. Acho que é um ensaio para uma barbárie sim.