Brasil. Um dia em suspenso, à espera do futuro

Brasil. Um dia em suspenso, à espera do futuro


O céu carregado, nas ruas silêncio. Palavras de ordem, só as carregadas ao peito – ou nos livros na mão com que brasileiros que votaram Fernando Haddad acorreram às urnas. Em dia de votação, São Paulo não é a mesma cidade da véspera, quando cidadãos anónimos tentavam até à última virar votos na rua. 


“Vai de Brasil, hoje?” Quem anda pelas ruas já está mais que treinado e sabe. Camisola verde e amarelo por estes dias não é futebol, é o candidato que fez campanha com “meu partido é o Brasil”. Bolsonaro. O motorista do Uber não responde. Aumenta antes o volume do rádio: “Além disso, duas pessoas já foram presas por crime eleitoral, em Oiapoque, Amapá. Poderão ser libertadas mediante pagamento de fiança.” Eram as notícias da manhã ainda. Até ao fecho das urnas, muitos outros seriam detidos, pela chamada "boca de urna". Depois de dois dias em que muitos apoiantes de Fernando Haddad saíram à rua num último esforço para virar votos para o candidato do PT, que se aproximava mas continuava a dez pontos de Jair Bolsonaro nas sondagens, as ruas de São Paulo são um deserto.

Mas há de dizer qualquer coisa o motorista: “Eu também já vou para casa. Tenho gente lá, de visita. Eram oito horas quando fui votar. Voto na Mocca e lá é tranquilo, tranquilo. Aqui no centro, tem colégios com fila na porta. Quer descer aqui no Mackenzie?” Pode ser. Para o lado de lá da Consolação fica Higienópolis, bairro rico, para o de cá, Baixo Augusta, Consolação. Zona de classe média, de estudantes e de artistas. Vê-se logo da rua a movimentação em direção ao Campus da Consolação da Pontificia Universidade Católica de São Paulo.

Camisetas do Brasil, nenhuma. Por aqui é tudo adesivos com a estrela do PT em vermelho, uma mulher de preto: “Lute como uma garota.” É a camiseta que esgota por todo o lado depois de Manuela d’Ávila, candidata a vice ao lado de Haddad, a ter usado por todo o país na campanha.

Seguindo Consolação abaixo, Copan ao fundo, do lado o Itália, no Dois G, “refeição e lanches diariamente”, na TV é futebol, ninguém dando importância. Campeonato inglês. Tudo de cara colada no celular. O nervoso da espera, no dia da eleição que por todo o lado se descreve como a mais importante desde a redemocratização do Brasil, há 30 anos, com o fim da ditadura militar.

Numa esplanada, Pedro e Marcus matam tempo na conversa antes de irem eles mesmos votar, nos bairros em que moravam quando se registaram pela primeira vez. Têm 24 e 23 anos. Esclarecem que votam PT. Não teria sido preciso. Por estes dias, o voto anda estampado nos rostos. Entre os aposentados que se sentam na mesa do lado, por exemplo, é fácil ver que o resultado é Bolsonaro. Como teria sido a votação dos pais de Marcus, se não fosse ele. “Conversando, consegui convencê-los que com um filho gay não poderiam votar Bolsonaro. A minha irmã, não consegui. Ela e o marido votam nele. A gente se afastou por isso.”

Subindo e descendo a Consolação, todo o mundo vai votar junto. Adesivos “Haddad 13”, um filho de mãos dadas com a mãe de um lado e o namorado do outro. Um pai que atravessa a rua de mãos ocupadas. De um lado a filha, do outro um livro. A camiseta não é vermelha, mas a mensagem é clara: “Gentileza gera gentileza.”

Do outro lado, na lanchonete, assiste-se ao futebol num ecrã, à Band News noutro: “Ao assumir o posto, presidente vai precisar retomar agenda de reformas.” De manhã, ao votar em Pinheiros, zona oeste de São Paulo, Michel Temer, o presidente em exercício desde o impeachment de Dilma Rousseff, garantia que a transição estava preparada.

À saída das urnas, também o presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, falava à imprensa, lembrando que “o futuro presidente terá como seu primeiro ato jurar a Constituição” e a importância do cumprimento do seu artigo terceiro, que citava, perante as câmaras: “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil construir uma sociedade livre, justa e solidária, garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais. E, importantíssimo, promover o bem de todos sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”

Na mão um livro Depois de na véspera vários blocos de carnaval se terem unido em festa pela virada percorrendo esta mesma rua – o histórico do PT Eduardo Suplicy com eles, coberto de purpurina – o silêncio que toma conta das habitualmente movimentadas ruas da maior cidade brasileira é perturbador. O livro na mão é grito de revolução de quem está por Haddad no dia em que o Brasil se decide. O apelo dos dirigentes do PT em resposta à apologia da violência para combater violência com que fez campanha Jair Bolsonaro – votar com livro, não com arma – foi levado à letra.

No Instagram, Guilherme Boulos, candidato do PSOL na primeira volta e que para a segunda fez campanha ao lado de Haddad e Manuela, deu o exemplo com “Batismo de Sangue: os dominicanos e a morte de Carlos Marighella”, um político, guerrilheiro e escritor brasileiro e um dos principais líderes da luta contra a ditadura militar: “A caminho da votação, com o ‘Batismo de Sangue’, de Frei Betto. Para não esquecer e nunca mais repetir! #ditaduranuncamais #haddad13”. E não era só ele. Também as montras das livrarias. “Como as Democracias Morrem”, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, “Subcidadania Brasileira”, de Jessé de Souza, “Afiadas – As mulheres que fizeram da opinião uma arte”, de Bernardo Ajzenberg, “Como conversar com um fascista” e “Ridículo Político”, de Marcia Tiburi, entre outros títulos políticos compunham dias antes uma montra na Paulista.

Também Stela, nordestina que se mudou para São Paulo para estudar cinema e hoje trabalha em publicidade, trouxe o seu. “Houve essa campanha entre os grupos de pessoas que votam no Haddad para trazer um livro e eu trouxe ‘Os Homens que Não Amavam as Mulheres’, do Stieg Larsson, porque gosto muito da protagonista feminina, que foi quem me fez virar feminista.” O irmão mais novo, Tomás, estudante de Física na Unicamp, em Campinas: “Psicologia das massas e análise do eu”, de Freud. “É uma coletânea de obras dele. No Brasil a educação não é algo que a gente sinta que seja valorizado e, para mim, ela é a maior arma contra o fascismo.” A educação e o livro, como símbolo.

“É um protesto pacífico. As pessoas ficam com medo de usar o vermelho porque estavam rolando uns ataques ao pessoal que saía vestido de vermelho. Tem muita gente que queria usar mas que fica com medo e o livro é uma boa alternativa para isso”, diz Stela. Adesivo de Haddad, blusa branca mas apelando à revolução. Boné vermelho, esse sim. Do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra.

Os dois passaram os últimos dias na rua, apelando ao voto em Haddad, em quem tinham votado já na primeira volta. Explicando que o que está em causa é o futuro do Brasil. O futuro da democracia brasileira. Ansioso pelo final do dia, pela hora em que seriam conhecidos os resultados, para Tomás a mobilização dos últimos dias já é uma vitória. “Mesmo que o que vier não seja Haddad, seja Bolsonaro, acho que depois dos últimos dias já teremos uns quatro anos mais democráticos.” Na véspera, a sondagem do Ibope colocava os candidatos separados por apenas oito pontos, a do Datafolha por dez. Mas com 8% de nulos ou brancos, mais 5% de indecisos ainda. “A gente fez o que a gente pôde. Fomos até ao fim.” Apesar do silêncio nervoso que se sente nas ruas, esperança na virada continua viva.

A ponto de os apoiantes do candidato do espectro político oposto, até há poucos dias convictos na vitória de Bolsonaro recearem o resultado da segunda volta. Na Av. Paulista, para onde prometeram mobilizar-se desde cedo, zero sinal deles a meio da tarde, a poucas horas do fecho das urnas em todos os estados, às 19h de Brasília (e São Paulo, 22h em Lisboa), altura em que seriam divulgados os resultados da contagem dos primeiros votos.

Céu rosa, o céu negro Ao volante do seu automóvel, Rosemere Cezar, mulher loira, decidida, estranha o ambiente. “Já no primeiro turno estava assim. Nublado, chuva no final do dia. E um silêncio… Nunca vi umas eleições assim. Você vota aqui ou é de Portugal mesmo?” Não. Viemos de Portugal, acompanhar as eleições. “Acredito que o mundo esteja indignado de saber que o Brasil tem um ex-presidente que está preso e que está aí, praticamente concorrendo de novo à presidência do Brasil. Porque por trás do Haddad a gente sabe que é ele, não é?” Rosemere fala de Lula, que na véspera, em Curitiba, onde continua preso, completara 72 anos.

Nesse dia, ao fim da tarde, o céu não estava negro que nem hoje. Fez-se rosa. Nas manifestações que percorreram a cidade em pequenos grupos gritou-se que estava vermelho. Sinal divino de virada, antes de cair a carga de água que ainda esperou que viesse o pároco da Consolação dar a benção à caminhada de apoio ao PT, Minhocão acima. Hoje, até o Minhocão (o Elevado Presidente João Goulart, recentemente renomeado em honra do presidente deposto pelo golpe que instaurou a ditadura militar em 1964) esteva fechado a passeios. Circulava o trânsito normal de um dia de semana. Aos fins de semana, como a Av. Paulista ao domingo, encerra ao trânsito e vira zona de passeio pedestre. Na véspera, ambos formaram dois dos mais importantes pontos de concentração em São Paulo dos vários grupos de cidadãos que passaram os últimos dias nas ruas fazendo a sua própria campanha, de apelo ao voto em Haddad. Não pelo PT, que continua a ser alvo da antipatia de muitos brasileiros, mas pela democracia.

Rosemere continua: “Graças a Deus que não deixaram Lula ser candidato. Mas para mim é uma vergonha saber que o Haddad está no segundo turno depois de todo o roubo que teve. Odeio o PT.” E não odeia também Bolsonaro? “Não. Acho que ele não é tudo isso que o pessoal fala, acho que o pessoal não entende o que ele fala. O que eu entendo é que ele não quis humilhar mulher – aliás, ele é casado e tem mulher. Acredito que a única pessoa que pode ajudar o Brasil, principalmente na segurança, é o Bolsonaro. Acho que o pessoal entende errado. O porte de arma é caro, tem que estar renovando todo o ano. Na verdade, tem muita gente que tem arma em casa. E é caro. Eu posso falar porque o meu marido era instrutor de tiro. É difícil um cidadão comum querer tirar porte de arma. Além disso, ele tem mais de 200 projetos na câmara e nunca aprovaram os projetos do coitado. Nunca gostaram dele. Agora, como presidente, ele vai poder fazer. Um menino, menor, se matou, roubou, vai ter que pagar por isso. As leis têm que ser mudadas. Acredito que tem que se mudar essas leis e o Bolsonaro isso vai fazer.”

A preocupação com Bolsonaro vem de onde então? “Não é tanto assim. A maioria das pessoas é Bolsonaro. Bolsonaro é um Trump brasileiro. E você vê o Trump e, por mais que eu não goste de algumas coisas que ele fala, ele melhorou os Estados Unidos. Eu gosto do Bolsonaro. Mas agora estou com medo. Ontem o Haddad apareceu já a dez pontos e hoje apareceram já dez urnas fraudadas. Foram cortados os fios. A gente pede que venha o Bolsonaro, o Brasil quer uma coisa nova, diferente. Se vier o PT, aquele roubo todo de novo para a gente. Primeiro o Lula, depois a Dilma que ele colocou para tomar conta para ele… Eu sei que não temos nada perfeito, mas a gente tem a chance de votar para mudar.”

Mas que está um dia estranho, está, concorda. “O brasileiro está num silêncio assim estranho. Mas já estava no primeiro turno assim. Agora é esperar o resultado. Talvez as pessoas estejam em casa ainda decidindo em quem votar.”