Oktober Festa. Este sábado, as torneiras vão jorrar em Marvila

Oktober Festa. Este sábado, as torneiras vão jorrar em Marvila


O Oktober Festa regressa amanhã a Marvila pelas torneiras da Musa, da Lince e da Dois Corvos, e o bairro cervejeiro de Lisboa vai encher-se de música, brindes e degustações. Fomos até às três fábricas perceber como se faz cerveja e quais as escolas por detrás do néctar


É fabricada destes tempos imemoriais, apreciada desde então nos quatro cantos do globo e, cada vez mais, o cartão-de-visita do primeiro bairro de cervejeiros de Lisboa: Marvila. Como a união faz a força, três produtores de cerveja artesanal – a Musa, a Lince e a Dois Corvos – uniram–se em sã camaradagem para a segunda edição do Oktober Festa. Amanhã, durante o dia, a música marca a degustação mas as estrelas são elas: as cervejas, no plural, que o leque de oferta é amplo e promete despertar papilas até aqui adormecidas. 

Na coluna ao lado pode consultar o programa completo da celebração, mas um dia dedicado à produção e prova de cerveja necessita de um guião mais profundo. Por isso, o i visitou as três promotoras do evento – que, entre si, produziram uma nova cerveja (uma Marzen, típica das Oktoberfeste) a ser apresentada amanhã – e ainda chamaram a nortenha Letra, a lisboeta Oitava Colina e a alentejana Barona, com quem produziram mais três novos produtos.

Antes de irmos aos copos, porém, talvez seja útil abrirmos os cadernos para tirar notas: afinal, como se produz cerveja?

Como se faz cerveja: lição 1.0 

Foi na Musa que iniciámos o périplo pelo mundo das craft beers e foi também aqui que, de uma forma resumida, Bruno Carrilho nos guiou pelo processo de produção. Há quatro ingredientes principais: água, o malte – que são os cereais, e aqui a primazia é dada à cevada, que “tem um conjunto de enzimas que produz os açúcares” -, o lúpulo e a levedura. “Depois, na prática, em cada cerveja usa-se um conjunto diferente de maltes”, explica.

É o malte que “dá os açúcares que vão ser fermentados e resultar no álcool, e é tipicamente daí que vem a cor – uma cerveja mais escura usa maltes mais escuros, mais torrados – e também algum tipo de sabor, dependendo do tipo de cerveja”. Os cereais, neste caso de uma marca inglesa e outra alemã, são maltados antes de serem usados. Mas o que significa isto? “É um processo prévio em que os cereais são aquecidos a um determinado grau de humidade para começar o processo de germinação”, que não é visível a olho nu. Esta é mais uma etapa necessária, que “faz com que os açúcares e os hidratos de carbono muito complexos que existem nos grãos comecem a desenvolver-se e a tornar-se açúcares mais simples, ficando assim ‘disponíveis’”. 

Os grãos vêm já maltados para a fábrica, na Rua do Açúcar – em Portugal só existe uma maltaria industrial. 

Depois começa a alquimia com o passo número um: os grãos são moídos numa máquina específica. “Não é uma moagem muito fina, é uma moagem sobretudo para partir os grãos.” Daí entram para um tanque em que são misturados com água e faz-se uma “espécie de papa de bebé/chá” em que todos os açúcares do malte vão sendo diluídos na água. “No fundo, é uma mistura de duas coisas: uma espécie de xarope em que a água absorveu todos os açúcares e fica assim um xarope açucarado, misturado com as grainhas todas.” 


Fotografia de Mafalda Gomes

Depois passamos ao processo seguinte: “Toda essa mistura vai para um tanque de filtragem onde separamos esse xarope, que é o que nós queremos, de todo esse bagaço, ao qual nós chamamos dresh [o equivalente ao mosto no vinho], que são todos os materiais que não foram diluídos.” 

Aqui entra uma curiosidade: de cada “lote” são extraídos 500 kg de grainhas, que as três fábricas oferecem a um produtor de vacas, o senhor Fernando. “Ele diz que as vacas adoram”, conta Bruno entre risos.

Parênteses feito, voltamos ao processo: o tal mosto entra num último tanque, é fervido durante cerca de uma hora, uma hora e meia – um passo “muito importante porque é aí que se matam todos os microrganismos” – e, aí sim, acrescenta–se o lúpulo (também há vários tipos). “É esta ervazinha que dá à cerveja uma série de coisas: nas cervejas craft beer que produzimos, dá muito aroma e sabor.” E esta erva, usada desde tempos primordiais, faz duplo sentido uma vez que também tem propriedades antissépticas. “Quanto mais lúpulo tem, mais a cerveja mata outros microrganismos. Antes, as pessoas bebiam a cerveja, que muitas vezes estava em melhores condições do que a água”, explica Bruno Carrilho, que nota que, nos dias de hoje – e no caso específico da Musa -, o lúpulo é inserido novamente numa fase mais tardia em algumas cervejas, o que se vai notar até no olfato.

Findo este passo, o mosto que esteve a ferver e é ainda um xarope com muito açúcar – “quanto mais açúcar, mais álcool produz, e a quantidade de malte que pomos no início tem a ver com o quão alcoólica queremos a cerveja” – é arrefecido a duas temperaturas, ou a 12 ou a 20 graus, dependendo do tipo de cerveja, e é aí que se insere o último ingrediente: a levedura. “A levedura é um fungo microscópico que basicamente faz o trabalho de fermentação: pega nos açúcares, decompõe-nos em álcool e CO2 e, obviamente, dá sabor à cerveja.” 

Agora, vamos às famílias. Há duas famílias principais de cervejas que são normalmente caracterizadas pelo tipo de levedura: as Lager e as Ale. “Há uma levedura que foi selecionada para fermentar a temperaturas, digamos, altas, e para além disso fermenta num topo do fermentador” – que tanto pode ser um balde como um tanque enorme – e “há outras leveduras que funcionam bem as temperaturas baixas, e essas até trabalham melhor na base dos fermentadores”, resume Pedro Lima, cervejeiro da Musa que se junta entretanto à conversa. As Lager, são, portanto, cervejas de baixa fermentação, demoram mais tempo e têm um “perfil mais limpo” e “elegante”. Já as Ale fermentam a temperaturas mais altas e têm, quase regra geral, um sabor mais “frutado”. 

Cerveja nos tanques a fermentar e maturar – um processo que demora no mínimo três semanas, no máximo dois meses -, passemos à história das “grandes escolas”.

Alemanha e um bocadinho de Reino Unido 

A cerveja mais associada à linha alemã e checa é a Lager – e no portefólio fixo da Musa há uma cerveja com estas características. Continuamos na fábrica da Rua do Açúcar e a palavra mantém-se com Pedro Lima, que nos fala desta escola muito, muito tradicional.

“As cervejas alemãs são historicamente, e hoje em dia ainda, muito baseadas numa lei que continua mais ou menos em vigor mas que já pode ser desrespeitada, que é a ‘lei da pureza’ [Reinheitsgebot], imposta no séc. xvi. Basicamente a lei dizia o que uma cerveja devia levar, e com isso define-se também o que não pode entrar numa cerveja, e isso é muito restritivo. Por isso, para ser uma cerveja na Alemanha, “os únicos ingredientes permitidos são água, malte, lúpulo e levedura, e nada mais”. Ou seja, basicamente os que tínhamos visto até aqui, mas Pedro aprofunda: “Por exemplo, se adicionarmos um açúcar, qualquer coisa, já não é considerada cerveja, ou usar cereais não maltados também não é permitido.” Ou seja, com esta definição, “a esmagadora maioria das cervejas industriais não são cerveja”, atalha Bruno. 

Na Alemanha há muitas cervejas características de regiões diferentes, outras mais transversais. “Os alemães são muitíssimo conhecidos principalmente por alguns tipos de Lager, em que o lúpulo é um bocadinho secundário e puxa-se muito pelo caráter do malte e da fermentação em si”, conta Pedro. 

Entre os tipos de Lager mais comuns estão as Pilsner [especialmente na República Checa] ou as Bock. Já agora, fique com duas curiosidades: as Lager devem ser bebidas algures entre os 6 e os 7 graus. Em cada família de cervejas, algumas podem ir até aos 20% de álcool.

Antes de passarmos para a Bélgica, uma breve paragem no Reino Unido, que também tem uma grande tradição cervejeira. “É um país muito dedicado às Ales e em que as cervejas, comparando com as alemãs, são mais pesadas, encorpadas e maltadas”, diz Bruno. “E os ingleses são ainda muito conhecidos por fazerem cervejas que acabam de maturar normalmente no sítio onde vão ser vendidas, por exemplo nos pubs”, lembra Pedro. 

Foi também em terras de sua majestade que surgiu a IPA – a Indian Pale Ale -, um estilo muito importante para o movimento de craft beers. “Basicamente, a IPA foi desenvolvida pelos ingleses, que depois exportavam para a Índia para alimentar os soldados. Então pegaram na cerveja que já faziam, que tem a designação muito genérica de Pale Ale, perceberam que para a cerveja aguentar mais tempo teriam de acrescentar muitíssimo mais lúpulo – para aí dez vezes mais – e, se as fizessem mais alcoólicas, elas ficavam bebíveis muito mais tempo.” E assim foi.

Bélgica

Do Reino Unido para a Bélgica é como quem diz da Musa para a Lince, onde António Carriço nos esperava para falar desta escola tão antiga. “Isto são duas belas muito conhecidas que foram um bocadinho a inspiração para a Lince”, começa por contar o cervejeiro enquanto aponta uma garrafa de Duvel e outra de Chimay. 


Fotografia de Mafalda Gomes

“O mundo da cerveja da Bélgica é radicalmente diferente do que era em Portugal, porque há milhentos fabricantes com altíssima qualidade. Esta Chimay, por exemplo, é feita pelos chamados trapistas, uma ordem [de monges] que existe há centenas de anos. Depois fazem umas cervejas mais leves, outras mais pesadas – do nosso ponto de vista, umas mais apropriadas a Portugal, outras menos -, mas do que gostamos na escola belga é a enorme variedade, a qualidade altíssima e a tradição de estar muito tempo a fazer as cervejas. Por exemplo, a Duvel não veio de um mosteiro, mas de uma fábrica. Fomos visitá-la antes de começar a Lince e tem uma coisa engraçada, já vão na quinta geração e contam coisas do género: ‘Houve um senhor que tinha a receita e depois esteve 32 anos a aperfeiçoá-la.’” 

Cá ainda não levam 32 anos (a produção começou a sério em junho de 2016), mas a fábrica de António Carriço e Pedro Vieira – e que com o nome quer prestar homenagem a “um dos animais mais bonitos, mais raros e mais próximos da extinção: o lince ibérico” – está apostada no “perfeccionismo”, “na variedade” e na “qualidade”. Dentro da escola belga, os sócios escolheram as cervejas que sentiram que se adaptavam mais a Portugal e, por isso, uma das suas primeiras cervejas foi uma Belgian Pale Ale. 

Mas porque dizem então que é belga se, como vimos, a designação Pale Ale é tão abrangente? “A receita é belga, todos os ingredientes principais são belgas, e até na água, que é uma coisa muito importante na cerveja, nós tentamos imitar a água belga, ajustando a composição química da água de Lisboa.” Segundo António, esta é uma “cerveja leve, tem um sabor um bocadinho cítrico porque acrescentamos casca de laranja [que também vem da Bélgica]”. 

Mais uma curiosidade sobre a aldeia gaulesa: no séc. xx, numa altura em que a produção de cerveja vivia uma espécie de “marasmo”, a Bélgica manteve sempre, orgulhosa, as suas tradições e as suas dezenas de estilos muito próprios – tem, por exemplo, cervejas azedas, ácidas ou ainda com sal.

Estados Unidos

Os últimos são sempre os primeiros, já dizia a Bíblia, e o versículo que virou ditado não podia encaixar melhor na nossa última paragem. É que a Dois Corvos, a nossa última visita, foi a primeira cervejeira a instalar-se em Marvila, em 2012. Um projeto nascido do sonho de Susana Cascais e do marido, Scott Steffans, norte-americano e que “desde a universidade fazia cerveja em casa”.

Moraram dez anos juntos em Seattle até montarem arraiais em Lisboa e, depois de serem incentivados por amigos e familiares fãs da produção caseira, resolveram montar o negócio, que ainda não parou de se expandir. E se a tradição nos EUA não é, pelas razões óbvias, secular, isto não quer dizer que não tenham sido os americanos a impulsionar o movimento “Real Ale”, no qual assenta este mundo novo das craft beers, que continua a expandir-se globalmente. 


Fotografia de Mafalda Gomes

“Durante bastante tempo, no séc. xx, as cervejas norte-americanas foram dominadas por marcas industriais. No início dos anos 80 houve um repescar de estilos antigos e muitas marcas começaram a despontar. Hoje são mais de seis mil cervejeiras artesanais nos EUA”, sublinha Susana. “É uma cultura muito enraizada e que tem um caráter muito regional: claro que o top-100 das cervejas artesanais tem distribuição nacional, mas muitas delas concentram-se numa área geográfica mais pequenina e há um espírito de comunidade muito presente, o que é muito giro.”

Os americanos foram então buscar estilos ingleses e alemães e “deram-lhes o seu cunho”. “Talvez o mais icónico seja a IPA. Foram os americanos que pegaram nesse estilo e o difundiram, pelo que acaba por ser, por assim dizer, o estilo mais omnipresente no mundo da cerveja artesanal na escola americana. O West Coast IPA é um estilo muito característico, depois começou a trabalhar-se o chamado New England IPA” e por aí fora. E qual é, por exemplo, o twist neste último? “A levedura, que é específica e lhe dá um aspeto mais turvo e texturado porque tem mais matéria em suspensão, e os lúpulos, que não são a puxar tanto para o amargo e são mais para o frutado. É uma cerveja com um caráter mais frutado e menos amargo que a IPA West Coast”, explica Susana.

Tal como o espírito que Susana descreve, também em Marvila se trabalha para criar o “espírito de comunidade de cerveja artesanal”. Os três fabricantes garantem que não competem entre si e que até se ajudam – é comum trocarem utensílios. Trabalharam todos juntos na cerveja que vão lançar amanhã, chamaram colegas de outro ponto do país e, pelo segundo ano, organizam esta festa que, no fundo, simboliza a nova corrente que escolheu Marvila como casa. Agora, brindemos.

Programação

ARMAZÉM (Rua do Açúcar, 105)

17h00 . DJSet: DJ Quesadilla

19h30 . Concerto: Party Brass Band

20h30 . DJSet: Johnny Chase

22h30 . Concerto: Funky Division

23h30 . DJSet: Silk (Cais do Sodré Funk Connection)

Dois Corvos (Rua Capitão Leitão, 94)

16h00 às 17h00: Prova comentada das cervejas Oktober Festa: sessão de apresentação e prova das cervejas colaborativas produzidas para o evento. Custo: 5€ por pessoa.

17h30 . DJSet: DJ Abel Santos

Lince (Rua do Açúcar, 76)

18h00: Concerto: Andrew White 

Fábrica Musa (Rua do Açúcar, 83)

15h00: Conversa: Ser ou não Ser(veja)

17h00 . DJSet: Nuno Dias, Pedro Paulos e Daniel Belo

20h00 . DJSet: Pedro Primo Figueiredo

23h00 . DJSet: Flama, Fuego y Sangre (La Flama Blanca, Sean Riley e Legendary Tigerman)