As eleições brasileiras


O Brasil mergulhou de cabeça nesta aventura perigosa, de consequências imprevisíveis. Se ainda é possível uma reviravolta para a segunda volta que conduza à eleição de Haddad, não há dúvida de que os resultados da primeira vão deixar sérias marcas na política brasileira


O Brasil atravessa neste momento uma das fases mais críticas da sua história, sendo manifesto que só o estado de absoluto desespero de um povo pode colocar uma das maiores nações do mundo em risco de eleger um radical de extrema-direita, saudosista da ditadura militar, como é Jair Bolsonaro, que só se tem caracterizado por um discurso de ódio envolto numa capa de messianismo moral e religioso, ou não tivesse ele mesmo o nome de Messias. Numa situação normal, Bolsonaro não passaria de uma figura risível, incapaz de conseguir o voto de qualquer pessoa minimamente séria. Se de facto está a conseguir ter tanto apoio por parte do povo brasileiro, tal resulta apenas do estado calamitoso a que o governo do PT deixou chegar o Brasil.

Não há dúvida de que esse governo teve bastante mérito nos programas sociais que lançou e que permitiram retirar milhões de brasileiros da miséria. Mas ao mesmo tempo alinhou em projectos irresponsáveis, como o de organizar sucessivamente dois megaeventos mundiais, os Jogos Olímpicos e o Mundial de futebol, que arrasaram completamente as finanças públicas brasileiras. Quando Lula saiu da presidência, os sinais de insatisfação de grande parte do eleitorado já eram visíveis e, com Dilma Rousseff, atingiram o ponto máximo, a partir do momento em que o Brasil foi profundamente atingido pela crise económica.

Para além disso, o impacto da Operação Lava Jato, capitaneada pelo juiz Sérgio Moro, deixou o Brasil numa situação semelhante àquela em que a Operação Mãos Limpas deixou a Itália. Exposta de uma forma brutal a corrupção do regime, o povo adquiriu uma grande desconfiança em relação aos governantes, tendo a investigação prosseguido ao ponto de atingir o ex-presidente Lula. Dilma tentou salvá-lo, nomeando-o chefe da Casa Civil, uma espécie de primeiro-ministro no sistema brasileiro, mas os tribunais nem sequer deixaram Lula tomar posse, alegando que a nomeação visava obstruir a justiça. A partir daqui gerou-se uma guerra entre o poder político e o poder judicial que este tem vindo sempre a vencer. O poder judicial não hesitou mesmo em acusar e prender Lula, apesar da enorme popularidade de que o mesmo continua a beneficiar.

Com o governo de Dilma em colapso total, o parlamento destituiu a presidente, numa atitude constitucionalmente muito questionável, uma vez que o impeachment exige responsabilidade penal e a acusação das célebres “pedaladas fiscais” dificilmente poderia ser encarada desta forma. Aqui, mais uma vez, o Brasil dividiu-se ao meio entre os que estavam fartos de Dilma e os que gritavam “não vai ter golpe”. Mas todos decidiram encarar o governo do seu substituto Michel Temer como um simples compasso de espera, deixando o verdadeiro combate para as futuras presidenciais, onde o PT continuava a ter o ás de trunfo na figura do próprio Lula, que todas as sondagens davam como favorito.

Só que, com base na lei da ficha limpa, que o próprio Lula tinha feito aprovar, os tribunais impediram-no de concorrer. O PT optou então por Haddad, um antigo prefeito de São Paulo, quase desconhecido fora desse Estado, apostando na sua identificação com Lula. A estratégia resultou, levando a uma enorme subida de Haddad, mas a ascensão deste nas sondagens reduziu as hipóteses de sucesso de candidatos mais bens colocados para bater Bolsonaro, como Ciro Gomes, Marina Silva ou Geraldo Alckmin. Bolsonaro, pelo contrário, em vez de estagnar, subia, vendo os seus apoios multiplicarem-se em virtude da rejeição de grande parte do eleitorado em relação a Haddad e ao PT. O atentado que sofreu permitiu-lhe, por outro lado, restringir as suas aparições públicas, o que o beneficiou, uma vez que sempre que fala sai asneira.

Aí, os opositores a Bolsonaro optaram por uma estratégia completamente errada que foi lançar o movimento #EleNão, multiplicando manifestações contra Bolsonaro em todo o país. Com isso se centrou a eleição apenas num dos candidatos, levando a que Bolsonaro se tornasse a figura-chave destas eleições. Como bem disse Ciro Gomes, essas manifestações eram prejudiciais aos outros candidatos, pois nunca iria aparecer um #EleNão no boletim de voto, e o que interessava era fazer passar ao segundo turno um candidato capaz de bater Bolsonaro. E Haddad é o pior candidato para conseguir isso, uma vez que acarreta consigo a enorme rejeição que, hoje, o eleitorado brasileiro sente pelo PT e que levou a que Dilma Rousseff nem sequer conseguisse ser eleita senadora.

Foi assim que o Brasil mergulhou de cabeça nesta aventura perigosa, de consequências imprevisíveis. Se ainda é possível uma reviravolta para a segunda volta que conduza à eleição de Haddad, não há dúvida de que os resultados da primeira vão deixar sérias marcas na política brasileira.

 

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990