“Para as pessoas que ao lerem isto vão dizer que não têm tempo [para ir ao médico], tenho uma informação fidedigna – infelizmente por experiência própria: se um dia tiverem cancro, o que mais vão ter é tempo. Não arrisquem”. As palavras são de José Alves, um engenheiro de 66 anos que é uma das 12 caras da exposição Depois do Cancro, a vida, inaugurada ontem na Assembleia da República para assinalar a 6.ª Semana Europeia de Luta Contra o Cancro de Cabeça e Pescoço – Campanha Make Sense, que arrancou na segunda-feira.
Foi em julho de 2010 que José Alves soube que tinha cancro: carcinoma espinocelular no pavimento da boca foi o diagnóstico. Ao i conta que foi numa ida ao dentista “para fazer um reajuste de uma prótese dentária” que descobriu a doença. Apesar de desconhecer “por completo” os sintomas do cancro da cavidade oral, a verdade é que ao passar a língua José sentia “do lado direito da gengiva uma superfície um pouco esponjosa, enquanto do lado esquerdo uma superfície lisa igual ao restante da boca”, recorda. Mas tal como tantos outros doentes, ignorou o sintoma. “Obviamente que ao não valorizar o sintoma, fiz o que toda gente faz habitualmente, quando não dói: fui deixando andar até precisar de ir a um médico, neste caso um médico dentista”, lamenta.
O tratamento foi desde logo determinado e pouco depois fez cirurgia, complementada com 33 sessões de radioterapia e três de quimioterapia. Contudo, quatro anos depois a doença voltou. Desta vez, era um carcinoma espinocelular no bordo inferior esquerdo da língua. A diferença é que desta vez estava atento. “A partir do primeiro tratamento em 2010, passei a informar-me sobre este tipo de cancro e a andar atento aos sintomas, pelo que, sempre que sentia algo de diferente na boca e que se prolongava, pelo menos, durante três semanas, dirigia-me ao médico ou ao médico dentista”, recorda. Por isso, “o segundo tumor foi detetado precocemente, logo o seu tratamento foi mais simples, muito menos invasivo e eficaz”. Uma cirurgia bastou para eliminar o tumor.
Desde aí, não voltou a ser apanhado na teia do cancro. Ainda assim, José continua atento. “Continuo muito atento aos sintomas que vão surgindo para os poder valorizar e, se for caso disso, recorrer a um médico ou a um médico dentista atempadamente”, refere. A doença levou-o a criar a Asadocoral – Associação dos Amigos dos Doentes com Cancro Oral -, para alertar a sociedade para o problema, apoiar os doentes e sensibilizar para a prevenção.
Para este sobrevivente, “não se deve dizer que o cancro está curado, mas sim tratado, isto para que o paciente nunca deixe de estar alerta para com os sintomas que poderão, eventualmente, surgir,”: “Tal e qual como me aconteceu após quatro anos”. É por isso que, ainda hoje, continua a ser observado clinicamente a cada seis meses. “Consulto alternadamente médico de família e médico dentista e não necessariamente (mas também) por ter tido cancro, mas porque o cancro me alertou para a necessidade da prevenção na saúde na sua globalidade: há muitas mais doenças para além do cancro e muito mais fatais, se não diagnosticadas precocemente”, defende.
O cancro da cabeça e pescoço Ana Castro é médica oncologista e presidente do Grupo de Estudos de Cancro de Cabeça e Pescoço (GECCP), por trás da Campanha Make Sense. Ao i, a especialista explica que um dos principais objetivos da exposição é “divulgar aquilo que é a doença”, uma vez que a preocupa o facto de haver “alguma desinformação”. Segundo Ana Castro, “as pessoas quando ouvem falar de cancro de cabeça e do pescoço pensam que são tumores cerebrais. E esses são precisamente os únicos que não fazem parte da cabeça e do pescoço”. A médica esclarece que os tumores de cabeça e pescoço são, sim, “aqueles que crescem nas vias aero-digestivas superiores e que atingem a pressão posterior do nariz, os ouvidos, a parte dos freios maxilares e dos freios perinasais, a parte da boca, da língua, das amígdalas, da faringe e da laringe”.
A par da desinformação que existe, os sintomas podem ser facilmente interpretados como insignificantes e facilmente confundíveis com quadros benignos, diz a presidente do GECCP. “Estamos a falar por exemplo de uma dor de garganta, que não passa em três semanas, uma obstrução nasal só de um dos lados, um sangramento nasal só de um dos lados, uma diminuição da audição só de um dos lados, rouquidão, feridas e aftas na boca que não passam durante três semanas… são todos sintomas que numa primeira fase são um desvalorizados e quando as pessoas vão ao médico já vão com situações muito avançadas”, alerta.
O cancro de cabeça e pescoço, de resto, pode ser potenciado por alguns comportamentos de risco, como o tabagismo e o consumo de álcool que, quando conjugados, potenciam o risco. Quanto a quantidades, “aquilo que está provado é que um consumo de álcool acima de 10 gramas por dia já é um fator de risco. O facto de esses hábitos terem uma maior prevalência entre os homens, leva a que o cancro da cabeça e do pescoço afete mais homens do que mulheres – é a quarta patologia com maior incidência em Portugal no género masculino. Para evitar riscos, o indicado é um copo de vinho à refeição”, aconselha a médica. Uma má higiene oral também apresenta perigo, bem como a prática de sexo oral desprotegido com múltiplos parceiros: “O problema aí é o Papilomavírus Humano (HPV), que é transmitido via sexo oral”, explica Ana Castro.
Números A palavra “cancro” é por si só suficiente para ficar alerta, mas os número deste tipo de cancro são especialmente impressionantes. Todos os anos, em Portugal, há mais de 3000 novos casos do cancro de cabeça e pescoço – que por dia, cá, tira a vida a três pessoas.
Num plano macro, por ano, as estimativas mostram que são diagnosticados cerca de 143 mil casos de cancro de cabeça e pescoço na Europa e que a doença mata mais de 68 mil pessoas. A nível mundial, este tipo de cancro é o sétimo mais comum.
São estes números que a exposição Depois do cancro, a vida – que estará até 5 de outubro na Assembleia da República – quer combater. Ao mesmo tempo, a iniciativa pretende “transmitir uma mensagem positiva e mostrar que, apesar das marcas físicas e psicológicas deixadas pela luta contra a doença, estas pessoas sobrevivem e retomam as suas vidas e aquilo que mais gostam de fazer e as pessoas com quem mais gostam de estar”, informa a organização, que acrescenta que as fotografias são a cores precisamente para assinalar a luta e celebrar a vida. O local escolhido não é inocente: os organizadores querem “marcar presença junto do poder político e continuar a sensibilizar os decisores para as necessidades dos sobreviventes de cancro de cabeça e pescoço”.