Jorge Reis-Sá. Hagiografia para totós


Dedicado a António Lobo Antunes, o mais recente volume da colecção Grandes Vidas Portuguesas – uma parceria da Imprensa Nacional com a Pato Lógico –, dirigida ao público juvenil, inadvertidamente resulta numa selvagem paródia dos textos encomiásticos que são encomendados a intelectuais menoríssimos em honra dos grandes vultos


A saúde da leitura vai como se sabe. Há uns anos, deu-lhe um fanico, uma perturbação ao nível dos índices com a queda do meteorito das novas tecnologias, que acabou submergindo a terra numa imensa nuvem de cinzas, depois veio o tsunami, desde aí, a mundanidade tem reinado sem oposição. Então vieram os doutores com os kits de socorro, bombas de oxigénio e receituários. Internada de urgência, sinais vitais soletrados por máquinas, respiração assistida e o raio. Depois do pânico, o quadro foi estabilizando mas, uma vez por outra, a meio da noite, uma das máquinas apita e monta-se de novo um estardalhaço. Entubada, escapa do coma por um triz. Mas do inferno das consultas, do tom pesaroso e do diagnóstico reservado, para onde quer que se vire, disso já não se livra. E nem de ir pelos corredores na humilhante bata, arrastando o balão de soro com o pandeiro a espreitar pelo rasgão.

Entre consultas da especialidade, baterias de exames, cuidados intensivos, o que resulta claro é que, no que toca a dar cabo da paciência dos leitores, não há política mais eficaz do que a arenga dos incentivos, os planos nacionais para isto e para aquilo, linhas de socorro, os prémios com aquela pontaria danada que vai dar sempre a uns e umas, revezando-se na sua evidente nulidade. Tudo o que vai aí de campanha e promoção para excitar o consumo dos livros parece favorecido por uma lei da gravidade própria. A ordem é impingir, baralhar as estatísticas e voltar a dar. Já se os livros se lêem, se deles se retira outro mundo das coisas, isso nem é secundário; não interessa nada.

Se já aqui houve – nestas páginas – oportunidade de saudar a reaparição da editora do Estado, o ter sido arrancada à narcose, tão satisfeita só a assentar placas de mármore comemorativas sobre os mais sumptuosos túmulos… E se nos mereceu elogios o impulso, sob a direcção de Duarte Azinheira, ao descongelar as colecções que mais notabilizaram a Imprensa Nacional, o alargamento da sua intervenção editorial não tinha como ser impermeável à actual polulância que se impôs ao meio literário. Pois isto só pode obrigar-nos a um estado de alerta para o mais que provável assalto de tudo quanto seja roedor e parasita, os ovos que são postos justamente quando se abrem brechas para arejar uma instituição que celebra em breve 250 anos.

Eram 13 os volumes editados, a colecção Grandes Vidas Portuguesas – uma parceria entre a editora Pato Lógico e a INCM com o intuito de publicar “biografias de nomes da história e da cultura portuguesa escritas e ilustradas para o público juvenil” –, e já por ali se perfilava uma bela trupe de suspeitos, os do costume, esses que nem somam nem subtraem, mas só empatam. Há semanas surgiu mais um volume, agora dedicado a António Lobo Antunes, com ilustração a cargo de Nicolau e texto de Jorge Reis-Sá, e é sobre o “manancial descocado” que nos oferece este título – “O Amor das Coisas Belas (ou pelo menos das que eu considero belas)” – que aqui vamos debruçar-nos.

Entre os que se acham familiarizados com os bastidores do nosso meio editorial, o último dos intervenientes acima referidos é o que chega para accionar as sirenes. É difícil pensar numa figura mais elástica, um maior especialista em infiltrações que o ex-editor das Quasi. Com uma carreira onde se sucedem títulos e distinções a perder de vista, sempre bulindo acertos faustianos, Reis-Sá é um desses nomes que soam a legião. Dá vertigens, urticária, suores frios… Falida a sua editorial que chegou a ter uma loja, género nave futurista, andou pela Babel, criou a Glaciar – cujo catálogo melhor será descrito como o rastro de um caçador-colector de chorudos apoios institucionais –, e mantém agora uma “consultoria editorial” com a INCM. Depois da passagem pelas tribunas solertes que nos servem de mapa para as trocas de favores neste meio, mantém actualmente uma crónica mensal (“Edição Nacional”) no site da editora do Estado, onde continua a aditar novas entradas naquela que, um dia, será justamente reconhecida como a grande obra da sua vida: um “Dicionário das ideias feitas”, superando Flaubert no seu esforço para recolher um autêntico compêndio da banalidade, da mediocridade e da ignorância pretensiosa.

Em tudo quanto escreve, seja quando corta em versos, arredonda em crónicas, ou enchouriça em romances, tal como nas horas em que empresta o seu “Dom” para abordar os feitos de líderes como o Papa Francisco ou Paulo Bento (ex-seleccionador nacional), de quem escreveu uma biografia, Reis-Sá encarna, inadvertidamente, aquela apoteose das trivialidades que gozam de uma aprovação geral. Como veremos, seria muito fácil condensar uma série de apontamentos como tomos centrais da tal “enciclopédia da estupidez humana”. Desta vez, sem o menor travo de ironia, e com o empolamento próprio do arrivista, esse signo dominante nesta grande época.

Se a ideia desta nova colecção é apresentar a um público mais jovem algumas figuras centrais da história e da cultura nacionais, e se, em princípio, este será o tipo de iniciativas que raramente se contestam, já veremos o perigo de se dar rédea solta a tão comoventes programas. O que logo ressalta neste volume é a estranha ideia que o escriba faz do seu público-alvo, dando-se as maiores liberdades, um cheque em branco passado de si a si mesmo, decidindo tratar o leitor como se fora um retardado. E este livro que acaba por funcionar como uma paródia alarve do modo como, entre nós, muitos autores menoríssimos, de tudo o que experimentam a ver se dá, fazem também perninhas no terreno do infanto-juvenil, começa assim: “Era uma vez um menino chamado António./ O António não tem nome, só verbo: escrever.” O arranque basta para nos sacudir o pressentimento de que vem aí um festival de disparates. E não é preciso esperar muito para nos vermos diante de um chorrilho de zigues e zagues à toa, repetições à bruta, contradições e frases de gosto bem mais do que duvidoso, mas que o leitor ou perdoará ou nem há-de notar, até porque é um niquinho tantã.

“O António não escreve. Ele diz sempre que é a mão que lhe guia o raciocínio. Já pensaste na beleza desta coisa tão simples? Termos uma mão que nos obriga a escrever como os pés nos obrigam a caminhar. As mãos são os pés do escritor, ele anda sempre a fazer quarenta quilómetros de maratona. O António corre maratonas e chama-lhe um livro.”
Esta homenagem taralhouca nem se chega ao dom perverso que faz do leitor mais jovem um especialista de corta-mato, lenhador de árvores que só dão bocejos, que as sacode em busca da arritmia dos frutos crescidos ao sol das melhores invenções verbais e visuais, jogos de palavras e arroubos da imaginação. Gaguejando frasezinhas soltas numa criancice pegada, Reis-Sá aparece-nos perdido diante do maná de todos os lugares-comuns, daquele “tom mimalho” e da afectação a que Lobo Antunes nos habituou nas declarações feitas à margem (normalmente) da sua literatura.

“O António nasceu para escrever, mas cresceu para ser médico. O pai do António era médico e o irmão João também. O irmão Nuno ainda é. Mas o António era um médico diferente – aos olhos do pai – porque não curava pessoas com gesso, antes a infelicidade com livros. O António era psiquiatra. E mesmo como médico, só se queria e queria curar os outros com livros. Cuidar da solidão? Do medo? Do tédio? Da felicidade? Cada livro do António tem a posologia necessária para todos os momentos da nossa vida.”

Este modelo sumamente redundante da hagiografia passa por transformar a história do escritor em destino. Lobo Antunes é, assim, um predestinado. E numa homenagem em que tudo, está de bom ver, escorre, tudo acaba elaborado numa indistinta baba. E toda a estratégia discursiva parece assentar sobre uns episódios de epilepsia metafórica, com o texto a acumular, um tanto ao acaso, dados biográficos de Lobo Antunes penteados à tigela e sentados no meio desses ditos ensebados que o romancista lança em tom de provérbio a ver se fazem escola.

“O António tem inveja dos poetas, diz. Acha que só escreve ficção, narrativa, romances (chamemos-lhe o quisermos, mas são os textos cujas frases chegam ao fim da linha) porque não consegue escrever poesia. O António também erra – ele é muito humano. E o António está errado: ele é um poeta. A poesia é que tem a mania de ser preguiçosa, com os versos a não chegarem ao fim da linha.”

Pérolas há que fazem de quem com elas se regozija autênticos porcos. E neste livrinho não há página de texto que não as sirva em abundância. A página 16, então, merecia figurar nas antologias da parvoíce literata. Começa com este primor da fraseologia oca: “O António nunca terá um fim triste, porque nunca terá um fim. Os livros do António existirão para sempre.” E mais abaixo esta: “O António não sabe se acredita em Deus. Mas acredita nos livros – o que é o mesmo.”

Como está em pleno vigor a paz podre que confere a cada literato cem anos de perdão, contando que não se ponha a chamar a atenção para a bandalheira que por aí vai, encaixai lá a frase seguinte: “O António escrevia às escondidas de todos, como se fosse pecado. E era – não se deve tentar chegar demasiado perto do Sol, ensinou-nos Ícaro. E o António queria tanto ser escritor que só imaginava o brilho das palavras a fazerem a sua Obra.”

Saídos desta, só uma coisa fica claro: quem aqui tanto quis ser escritor, tão deslumbrado ficou com a ideia, ao ponto de confundi-lo com um traficante de brilhos, foi o lorpa que se sentiu à altura de homenagear um colosso das nossas letras. E tão embalado vai que já não há quem o impeça de passar as maiores vergonhas. A frase seguinte diz isto: “A letra do António é tão pequenina, tão pequenina, tão pequenina que parece que não existe. Desde sempre. Depois, quando revê o livro, a letra do António é tão grande, tão grande, tão grande, mas continua a parecer que não existe, de tão feita de curvas e contracurvas. Como o coração, não é?”

Em termos de pesquisa, Reis-Sá parece ter-se embrenhado realmente na obra de ALA, ao ponto de ter lido os títulos de todos os romances – o que já não é pouca coisa, pois já vai nas três dezenas. Ora, por mais veleidades que tenha o escriba, não deixa de ser também um pouco preguiçoso, e consegue encher uma página inteira do livrinho elencando os títulos dos romances, com a desculpa de que “o nome do António não é António”, mas é o dos títulos da sua “Obra”. E adianta que todos são “longos e veros versos”.

É curioso como um livro tão curto vai tão longe na sua desarmada estultice: “O António é um poço sem fundo de contradições. Por isso este livro é uma ficção tão grande como qualquer um dos seus livros. Não há como dizer-vos quem é o António porque o António não é. Ou se é, é apenas nas páginas de cada livro que escreveu, nas sílabas de cada palavra que a mão lhe ditou para, tão pequena como um átomo, a fazer estacionar nas folhas do Hospital Miguel Bombarda”.

No meio de tudo isto, da tão grande vergonha alheia que o livro nos provoca, nem é de Lobo Antunes que mais nos compadecemos – sendo certo que, mesmo ele, com toda a sua queda para o sentimentalismo e os bailes da rêverie, não merecia isto –, mas do ilustrador, Nicolau. É no silêncio das suas dignas imagens, acompanhando à distância, e como que abanando a cabeça, o banzé do texto de Reis-Sá, que se retira o melhor do retrato de Lobo Antunes. Um escritor que provou já tantas vezes a sua grandeza, mesmo se o homem a quem esse vício se agarrou tantas vezes não sabe evitar a petulância e as birras que nele denunciam o que tem de menor.

 


António Lobo Antunes
O amor das coisas belas (ou pelo menos das que eu considero belas)

texto de Jorge Reis-Sá; Ilustração de Nicolau 

Edição: INCM – Imprensa Nacional Casa da Moeda / Pato Lógico, maio de 2018

Páginas: 42 | Preço: 11€

 

 

Jorge Reis-Sá. Hagiografia para totós


Dedicado a António Lobo Antunes, o mais recente volume da colecção Grandes Vidas Portuguesas – uma parceria da Imprensa Nacional com a Pato Lógico –, dirigida ao público juvenil, inadvertidamente resulta numa selvagem paródia dos textos encomiásticos que são encomendados a intelectuais menoríssimos em honra dos grandes vultos


A saúde da leitura vai como se sabe. Há uns anos, deu-lhe um fanico, uma perturbação ao nível dos índices com a queda do meteorito das novas tecnologias, que acabou submergindo a terra numa imensa nuvem de cinzas, depois veio o tsunami, desde aí, a mundanidade tem reinado sem oposição. Então vieram os doutores com os kits de socorro, bombas de oxigénio e receituários. Internada de urgência, sinais vitais soletrados por máquinas, respiração assistida e o raio. Depois do pânico, o quadro foi estabilizando mas, uma vez por outra, a meio da noite, uma das máquinas apita e monta-se de novo um estardalhaço. Entubada, escapa do coma por um triz. Mas do inferno das consultas, do tom pesaroso e do diagnóstico reservado, para onde quer que se vire, disso já não se livra. E nem de ir pelos corredores na humilhante bata, arrastando o balão de soro com o pandeiro a espreitar pelo rasgão.

Entre consultas da especialidade, baterias de exames, cuidados intensivos, o que resulta claro é que, no que toca a dar cabo da paciência dos leitores, não há política mais eficaz do que a arenga dos incentivos, os planos nacionais para isto e para aquilo, linhas de socorro, os prémios com aquela pontaria danada que vai dar sempre a uns e umas, revezando-se na sua evidente nulidade. Tudo o que vai aí de campanha e promoção para excitar o consumo dos livros parece favorecido por uma lei da gravidade própria. A ordem é impingir, baralhar as estatísticas e voltar a dar. Já se os livros se lêem, se deles se retira outro mundo das coisas, isso nem é secundário; não interessa nada.

Se já aqui houve – nestas páginas – oportunidade de saudar a reaparição da editora do Estado, o ter sido arrancada à narcose, tão satisfeita só a assentar placas de mármore comemorativas sobre os mais sumptuosos túmulos… E se nos mereceu elogios o impulso, sob a direcção de Duarte Azinheira, ao descongelar as colecções que mais notabilizaram a Imprensa Nacional, o alargamento da sua intervenção editorial não tinha como ser impermeável à actual polulância que se impôs ao meio literário. Pois isto só pode obrigar-nos a um estado de alerta para o mais que provável assalto de tudo quanto seja roedor e parasita, os ovos que são postos justamente quando se abrem brechas para arejar uma instituição que celebra em breve 250 anos.

Eram 13 os volumes editados, a colecção Grandes Vidas Portuguesas – uma parceria entre a editora Pato Lógico e a INCM com o intuito de publicar “biografias de nomes da história e da cultura portuguesa escritas e ilustradas para o público juvenil” –, e já por ali se perfilava uma bela trupe de suspeitos, os do costume, esses que nem somam nem subtraem, mas só empatam. Há semanas surgiu mais um volume, agora dedicado a António Lobo Antunes, com ilustração a cargo de Nicolau e texto de Jorge Reis-Sá, e é sobre o “manancial descocado” que nos oferece este título – “O Amor das Coisas Belas (ou pelo menos das que eu considero belas)” – que aqui vamos debruçar-nos.

Entre os que se acham familiarizados com os bastidores do nosso meio editorial, o último dos intervenientes acima referidos é o que chega para accionar as sirenes. É difícil pensar numa figura mais elástica, um maior especialista em infiltrações que o ex-editor das Quasi. Com uma carreira onde se sucedem títulos e distinções a perder de vista, sempre bulindo acertos faustianos, Reis-Sá é um desses nomes que soam a legião. Dá vertigens, urticária, suores frios… Falida a sua editorial que chegou a ter uma loja, género nave futurista, andou pela Babel, criou a Glaciar – cujo catálogo melhor será descrito como o rastro de um caçador-colector de chorudos apoios institucionais –, e mantém agora uma “consultoria editorial” com a INCM. Depois da passagem pelas tribunas solertes que nos servem de mapa para as trocas de favores neste meio, mantém actualmente uma crónica mensal (“Edição Nacional”) no site da editora do Estado, onde continua a aditar novas entradas naquela que, um dia, será justamente reconhecida como a grande obra da sua vida: um “Dicionário das ideias feitas”, superando Flaubert no seu esforço para recolher um autêntico compêndio da banalidade, da mediocridade e da ignorância pretensiosa.

Em tudo quanto escreve, seja quando corta em versos, arredonda em crónicas, ou enchouriça em romances, tal como nas horas em que empresta o seu “Dom” para abordar os feitos de líderes como o Papa Francisco ou Paulo Bento (ex-seleccionador nacional), de quem escreveu uma biografia, Reis-Sá encarna, inadvertidamente, aquela apoteose das trivialidades que gozam de uma aprovação geral. Como veremos, seria muito fácil condensar uma série de apontamentos como tomos centrais da tal “enciclopédia da estupidez humana”. Desta vez, sem o menor travo de ironia, e com o empolamento próprio do arrivista, esse signo dominante nesta grande época.

Se a ideia desta nova colecção é apresentar a um público mais jovem algumas figuras centrais da história e da cultura nacionais, e se, em princípio, este será o tipo de iniciativas que raramente se contestam, já veremos o perigo de se dar rédea solta a tão comoventes programas. O que logo ressalta neste volume é a estranha ideia que o escriba faz do seu público-alvo, dando-se as maiores liberdades, um cheque em branco passado de si a si mesmo, decidindo tratar o leitor como se fora um retardado. E este livro que acaba por funcionar como uma paródia alarve do modo como, entre nós, muitos autores menoríssimos, de tudo o que experimentam a ver se dá, fazem também perninhas no terreno do infanto-juvenil, começa assim: “Era uma vez um menino chamado António./ O António não tem nome, só verbo: escrever.” O arranque basta para nos sacudir o pressentimento de que vem aí um festival de disparates. E não é preciso esperar muito para nos vermos diante de um chorrilho de zigues e zagues à toa, repetições à bruta, contradições e frases de gosto bem mais do que duvidoso, mas que o leitor ou perdoará ou nem há-de notar, até porque é um niquinho tantã.

“O António não escreve. Ele diz sempre que é a mão que lhe guia o raciocínio. Já pensaste na beleza desta coisa tão simples? Termos uma mão que nos obriga a escrever como os pés nos obrigam a caminhar. As mãos são os pés do escritor, ele anda sempre a fazer quarenta quilómetros de maratona. O António corre maratonas e chama-lhe um livro.”
Esta homenagem taralhouca nem se chega ao dom perverso que faz do leitor mais jovem um especialista de corta-mato, lenhador de árvores que só dão bocejos, que as sacode em busca da arritmia dos frutos crescidos ao sol das melhores invenções verbais e visuais, jogos de palavras e arroubos da imaginação. Gaguejando frasezinhas soltas numa criancice pegada, Reis-Sá aparece-nos perdido diante do maná de todos os lugares-comuns, daquele “tom mimalho” e da afectação a que Lobo Antunes nos habituou nas declarações feitas à margem (normalmente) da sua literatura.

“O António nasceu para escrever, mas cresceu para ser médico. O pai do António era médico e o irmão João também. O irmão Nuno ainda é. Mas o António era um médico diferente – aos olhos do pai – porque não curava pessoas com gesso, antes a infelicidade com livros. O António era psiquiatra. E mesmo como médico, só se queria e queria curar os outros com livros. Cuidar da solidão? Do medo? Do tédio? Da felicidade? Cada livro do António tem a posologia necessária para todos os momentos da nossa vida.”

Este modelo sumamente redundante da hagiografia passa por transformar a história do escritor em destino. Lobo Antunes é, assim, um predestinado. E numa homenagem em que tudo, está de bom ver, escorre, tudo acaba elaborado numa indistinta baba. E toda a estratégia discursiva parece assentar sobre uns episódios de epilepsia metafórica, com o texto a acumular, um tanto ao acaso, dados biográficos de Lobo Antunes penteados à tigela e sentados no meio desses ditos ensebados que o romancista lança em tom de provérbio a ver se fazem escola.

“O António tem inveja dos poetas, diz. Acha que só escreve ficção, narrativa, romances (chamemos-lhe o quisermos, mas são os textos cujas frases chegam ao fim da linha) porque não consegue escrever poesia. O António também erra – ele é muito humano. E o António está errado: ele é um poeta. A poesia é que tem a mania de ser preguiçosa, com os versos a não chegarem ao fim da linha.”

Pérolas há que fazem de quem com elas se regozija autênticos porcos. E neste livrinho não há página de texto que não as sirva em abundância. A página 16, então, merecia figurar nas antologias da parvoíce literata. Começa com este primor da fraseologia oca: “O António nunca terá um fim triste, porque nunca terá um fim. Os livros do António existirão para sempre.” E mais abaixo esta: “O António não sabe se acredita em Deus. Mas acredita nos livros – o que é o mesmo.”

Como está em pleno vigor a paz podre que confere a cada literato cem anos de perdão, contando que não se ponha a chamar a atenção para a bandalheira que por aí vai, encaixai lá a frase seguinte: “O António escrevia às escondidas de todos, como se fosse pecado. E era – não se deve tentar chegar demasiado perto do Sol, ensinou-nos Ícaro. E o António queria tanto ser escritor que só imaginava o brilho das palavras a fazerem a sua Obra.”

Saídos desta, só uma coisa fica claro: quem aqui tanto quis ser escritor, tão deslumbrado ficou com a ideia, ao ponto de confundi-lo com um traficante de brilhos, foi o lorpa que se sentiu à altura de homenagear um colosso das nossas letras. E tão embalado vai que já não há quem o impeça de passar as maiores vergonhas. A frase seguinte diz isto: “A letra do António é tão pequenina, tão pequenina, tão pequenina que parece que não existe. Desde sempre. Depois, quando revê o livro, a letra do António é tão grande, tão grande, tão grande, mas continua a parecer que não existe, de tão feita de curvas e contracurvas. Como o coração, não é?”

Em termos de pesquisa, Reis-Sá parece ter-se embrenhado realmente na obra de ALA, ao ponto de ter lido os títulos de todos os romances – o que já não é pouca coisa, pois já vai nas três dezenas. Ora, por mais veleidades que tenha o escriba, não deixa de ser também um pouco preguiçoso, e consegue encher uma página inteira do livrinho elencando os títulos dos romances, com a desculpa de que “o nome do António não é António”, mas é o dos títulos da sua “Obra”. E adianta que todos são “longos e veros versos”.

É curioso como um livro tão curto vai tão longe na sua desarmada estultice: “O António é um poço sem fundo de contradições. Por isso este livro é uma ficção tão grande como qualquer um dos seus livros. Não há como dizer-vos quem é o António porque o António não é. Ou se é, é apenas nas páginas de cada livro que escreveu, nas sílabas de cada palavra que a mão lhe ditou para, tão pequena como um átomo, a fazer estacionar nas folhas do Hospital Miguel Bombarda”.

No meio de tudo isto, da tão grande vergonha alheia que o livro nos provoca, nem é de Lobo Antunes que mais nos compadecemos – sendo certo que, mesmo ele, com toda a sua queda para o sentimentalismo e os bailes da rêverie, não merecia isto –, mas do ilustrador, Nicolau. É no silêncio das suas dignas imagens, acompanhando à distância, e como que abanando a cabeça, o banzé do texto de Reis-Sá, que se retira o melhor do retrato de Lobo Antunes. Um escritor que provou já tantas vezes a sua grandeza, mesmo se o homem a quem esse vício se agarrou tantas vezes não sabe evitar a petulância e as birras que nele denunciam o que tem de menor.

 


António Lobo Antunes
O amor das coisas belas (ou pelo menos das que eu considero belas)

texto de Jorge Reis-Sá; Ilustração de Nicolau 

Edição: INCM – Imprensa Nacional Casa da Moeda / Pato Lógico, maio de 2018

Páginas: 42 | Preço: 11€