Por estes dias, a grande surpresa numa lista de leituras de verão será não apanhar com a fruta mais tocada, essas nêsperas, pêssegos, cerejas, melancias ou melões que não oferecem mais do que caroços envolvidos de uma polpa de sabor aguado, mas que comparecem em todas as listas porque as merecearias as vendem como frescas e têm de se aliviar delas antes que apodreçam. Aqui, ao invés dos nossos tão jovens ficcionistas de quarenta anos e mais, preferimos fazer uma selecção de pacatos incêndiários, um ou outro já mortos, e cujos escritos permanecerão por muito tempo fumegantes.
O verão, este ano, está um bicho que ninguém entende. À frente, vieram aqueles dias encobertos de uma estação abandonada a meio de um páis perdido, e agora é que chegam os dias mais brutos, e a canícula. Ora, para os que estão de papo para o ar, os que foram a banhos, talvez lhes falte o ânimo para estafar os neurónios com leituras exigentes, mas mesmo para esses esta lista foi pensada. Ela é para os que na areia não encontram posição, e se sentem escaldar, ao passo que na água se sentem enregelar. É uma lista para molhar o pé, e para, com umas poucas páginas, sentir-se a boiar, sem peso, e descansando a nuca na linha do horizonte.
Areias Brancas de Geoff Dyer
Edição:Quetzal Editores
Preço: 16,60€
Não é um destino exótico o que nos dá garantia de nos escancarar a cabeça e os sentidos. É preciso algo mais. Um desatavio, um génio buliçoso, capaz de se imiscuir nas paisagens, nos ambientes, lugares. Dyer é um desses talentos, dono de uma prosa melíflua, que atravessa o globo ou cruza a rua com a mesma graciosidade. Lê-lo é como descobrir a droga da nossa preferência. Essa que nos prepara, nos leva pelos grandes desassossegos ou contrariedades, pelas epifanias ou visões com a mesma descontração e boa onda. A Cidade Proibida, em Pequim, a Polinésia Francesa ou o norte da Noruega são meros pretextos. O que nos guia e encanta é a licensiosidade intelectual de Dyer.
A Prática da Natureza Selvagem de Gary Snyder
tradução: José Miguel Silva
Edição: Antígona
Snyder escreve como um veio de água doce tomando balanço e escaqueirando-se calmamente entre regiões selvagens, fazendo o caminho de uma compreensão profunda, meditativa e erudita daquilo que está na base da ecologia. Nesta reunião de nove ensaios, o poeta que estava já no corredor quando a geração beat saiu para o recreio, não nos vem com a retórica estafada nem a pedagogia bacoca para tentar converter-nos, mas usa da sua experiência, do muito que aprendeu pelo mundo, e é como se nos levasse às cavalitas, até nos crestar a pele, tensionar os nervos, dilatar os pulmões, sem nunca nos termos levantado do sofá.
Ficar na Cama e Outros Ensaios de G.K. Chesterton
Tradução: Frederico Pedreira
Edição: Relógio D’Água
Dá a imprensão que a literatura cada vez conta mais com as cartilagens, unhas, cabelos, essas coisas que continuam a crescer mesmo se o cadáver vai adiantado já na decomposição. Com Chesterton, por outro lado, não há cá contemplações para com cerimónias vazias. E não é que lhe falta sedução cerimoniosa. A sua escrita é o mais ardiloso manual de etiqueta. Vai muito mais fundo que a simples compostura ou as regras sociais. Aqui, a inteligência organiza as suas bonecas à volta do bule de chá e, de um momento para o outro, somos todos uns lordes ingleses discutindo a fundo “tremendas trivialidades”.
Coração de Abacate de Eunice de Sousa
Tradução: Francisco José Craveiro de Carvalho
Edição: Do lado esquerdo
Topem-me esse título… Que prodígio, não? E é bem o tiro que até se lambe ao atravessar o singular corpo desta obra poética. Não há um passo que, na sua firmeza, não nos cause uma sensação de disciplina arrebatadora. Desaparecida no ano passado, esta poeta indiana tinha já uma excelente antologia dos seus poemas em português (traduzidos do inglês por Ana Luísa Amaral), e agora regressa ao nosso convívio para lembrar-nos que a poesia é a arte mágica das assombrosas sínteses: “Espalhem as minhas cinzas em Western Ghats/ Pareceram-me sempre a minha casa./ Que os leopardos ganhem/ Gosto pela poesia/ Os corvos e milhafres aprendam/ A modular a voz/ Que haja nevoeiro e quedas de água/ Erva e flores/ Fora de estação.
Aos Pés do Mestre de António Barahona
Edição: Averno
Se há hoje a necessidade de um afinador de pianos na poesia portuguesa, talvez só Barahona esteja à altura do desafio. Cada um toca para seu lado, guerreando todos por fanatismos de nada. Com um fabuloso ouvido para os mais sensíveis abalos desta tectónica, este poeta pode ser visto a subir e descer às casas, variando nos séculos, conversando longamente com todo o género de consortes, apurando o idioma lírico. E ao invés da arrogância de quem pretende arrumar de vez o assunto, vai antes desimpedindo o caminho, tratando da convalescença da admiração e do espanto, para que os poetas mais novos possam beber dos grandes ecos sem medo de ficarem engaiolados.
Desdizer de Antonio Carlos Secchin
Edição: Imprensa Nacional-Casa da Moeda
Drummond teve a nobreza imensa de ter feito uma poesia que escutava atrás de todas as portas, que sabia ser a mosca na parede, e depois tinha um coração de gigante, capaz de celebrar todas as ocasiões. O Brasil ficou todo na primeira fila das aulas dele, e depois ainda havia que frequentar as de João Cabral e Vinicius. Ir a essa escola era muito melhor do que fazer gazeta. Secchin doutorou-se lá, e hoje dá aulas também. A felicidade da reunião da sua obra entre nós dá-nos a oportunidade de descobrir a humílima ciência de mais um grande poeta, um discreto projectista que nos embala nos seus “sonhos de sonho de sim e dor misturada, / voragem do gozo de um não à beira-nada, / até tudo virar poeira ou monumento”.
Brasil em Campo de Nelson Rodrigues
Edição: Tinta-da-China
O que falta dizer sobre o descaramento deste monstro que vive debaixo da cama das nossas infantilidades? O maior cronista desta língua passa murros na tromba da nossa boa consciência e, com sangue nos dentes, a gente não evita a risada. Fale de futebol ou de qualquer coisinha jogada a feijões, na decisão dos lances não há génio que se lhe compare na hora de obrigar o bom senso a voltar para o galinheiro. Se a selecção canarinha se fica, hoje, por meias-desilusões, Nelson Rodrigues fura as redes com cada bojarda, e ler esta reunião de 71 crónicas organizada pela filha é uma alegria que não merecia o azar de estar na editora que faz maior salsada editorial para ganhar a linha da frente no carnaval mediático.
Uma Odisseia, Um Pai, Um Filho e Uma Epopeia de Daniel Mendelsohn
Tradução: Paulo Osório de Castro
Edição: Elsinore
A literatura já gozou de melhor fama. Hoje, é muitas vezes tida como o habitat natural dos chatos, e cada vez mais pessoas estão com Pessoa quando escreveu: “Ai que prazer/ Não cumprir um dever,/ Ter um livro para ler/ E não o fazer!”. Isto ainda se agrava quando vêm os especialistas caixadóculos, com as suas insípidas explicações sobre o pêlo e a verruga na fuça dos clássicos. Ora, Mendelsohn é um anti-chato. O genéro de classicista que conhece tão bem a sua cena que trata Homero por tu. Neste radiante ensaio crítico e volume de memórias salta à corda entre as epopeias e a sua vida pessoal, e consegue que o leitor se emocione com tudo.
Electra, nº2 de Vários autores
Direcção: José Manuel dos Santos
Editor: António Guerreiro
Edição: Fundação EDP
A cultura portuguesa encontra-se naquela fastidiosa encruzilhada em que nada parece ter a menor importância. O pensamento é de loiça, parte-se sendo dominado pelas emoções, e nada consegue ir além da gritaria do parto. As inúmeras formas de estupidez desta época travam ou passam ao lado de qualquer análise sustentada, profunda, lenta. No seu segundo número, e tendo a estupidez como tema central, esta revista surge entre nós como algo de inqualificável, intempestivo, uma machadada que, se não alcança maior repercussão, talvez seja por o actual império da estupidez passar por um acolchoamento dos caminhos para a mediocridade do espírito contemporâneo andar descalça.