Tão mais vasta que o presente, a antiguidade é um abissal convívio, e aflora aí sempre que um furo se abre no pano, quando a linha se descose, convidando o poeta a abandonar a tentadora ilusão da sua época, o seu fechamento. O tradutor e poeta brasileiro Guilherme Gontijo Flores tem sobre tantos dos seus contemporâneos a vantagem de cedo se ter desfeito do complexo do autor, esse que é uma ilha, o auto-convencido ser que acha em si o ovo e a galinha do seu processo criativo. A sua mania faz-se da sensação de que tudo quanto há fora dele fica esmagado face ao que leva dentro. O céu e a terra não podem muito contra a sua filosofia. Por isso, a necessidade de um “desmame dos séculos” é coisa que lhe passa ao lado. Já Guilherme, no lugar da ambição, parece ter algo de mais orgânico: uma fome de consciência.
A sua soberba é a de quem afirma: “Tenho a tradição inteira ao meu dispor”. E fala de uma “continuidade real entre o meu trabalho de tradutor e de poeta”, preparando-se para essa queda acidentada de quem escuta uma palavra na refracção entre as línguas, com vontade de se ver na pele daquele “aventureiro completamente perdido”, que foi o modo como Herberto Helder figurava a “vida acrobática e centrífuga” do seu poliglota, munido de instrumentos de desorientação e “cheio de malícias linguísticas”.
Isto há-de entroncar no mais recente volume de poesia original de Gontijo Flores, “carvão :: capim”, mas, por agora, importa-nos primeiramente falar dessa aristocracia desdenhosa em face da actualidade, do vício do imediato, na qual se enquadra o poeta. Posto fora da sala, com zero a comportamento, ele acha o seu lugar na universidade desconhecida, uma escola de danados com horários tremendamente flexíveis, e com a generosidade de quem aprende a copiar e deixa que os outros por ele copiem. Com o tempo, o ombro do poeta torna-se um largo poleiro para as aves mais estapafúrdias, uma cor nas penas de puxar lágrimas ao sol. Ora, ao poeta arrelia esse modo dissimulado de conformação que é a sensibilidade do seu tempo, o gosto. Ele recusa-se a ser mais um nessa longa lista de artistas condenados a agradar ao público, e prefere fingir que escreve para os que hão-de vir, quando, a verdade, é que lhe interessa muito mais impressionar os seus mortos, cavaquear com eles.
No que toca à literatura, nada como a tradução mais infiel para impregnar uma língua de novas suspeitas. A imperfeição do transplante pode abri-la a um efeito de transtorno, até mesmo de gaguez, nesse impetuoso processo em que se aproxima outro idioma do nosso para, assim, “deliberadamente/ desastrá-lo”. Na introdução à primeira edição de “O Bebedor Nocturno”, onde os poemas pulsam de vida arrancados, “por súbito amor”, ao trânsito entre línguas – muitas vezes oriundos de algumas que o poeta desconhecia de todo –, Herberto assume que o não saber línguas é a sua vantagem. Livre de amarras filológicas, podia concentrar-se não na paixão por um corpo, mas na paixão pela paixão. Os poemas ainda não se diziam “mudados para português”, eram versões de um poeta praticando a sua existência “em estado de Babel”.
Gontijo Flores tem um poema chamado “Miss Antropofagia” que funciona como um admirável programa, e nele há uns versos que se destacam pela sua qualidade radiante: “Só me interessa o que não é meu, nem do outro. O que no outro nem dele era./ Achar no fígado de Percy Shelley uma desculpa para o coração.” A isto ainda acrescenta: “Somente a tradução nos salva. Desde que não nos una./ Aponta o rumo da deriva.” Fica claro, aqui, que o poeta entende o seu ofício como uma forma de voragem, o acto de devorar o coração do outro, tomando o seu poder. Mas para isso não pode deixar de ser seduzido pelo inimigo. Sem essa estranheza e, até, inimizade, não se alcança uma intimidade chocante, viva de contrastes e, por isso, tão arrebatadora.
Em entrevista ao jornal o “Globo”, a propósito da sua actividade como tradutor, Gontijo Flores disse estar “decidido a publicar os poemas amorosos do Antigo Egipto como se fosse um livro meu, para mostrar que as escolhas e o modo de traduzir dizem respeito aos modos como escrevo poesia”. Este poliglota que “conhece grego, latim, inglês, espanhol, francês, italiano, alemão e anda estudando egípcio antigo (escrito em hieróglifos) para traduzir poemas de amor”, ter-se-á dado conta dessa forma de expandir a consciência, de criar imagens que desnaturalizam o mundo e volatilizam a realidade, tendo um ouvido no transcurso das línguas.
Herberto punha a hipótese de o poliglota pegar na palavra cravo (isto, em Março de 1968, não deixa de ser um curioso sinal de previdência) e traduzi-la em quinze línguas. Nisto, “o cravo é cada vez menos cravo”, tornando-se “uma colorida e abstracta proliferação sonora”. Depois, indo mais longe no “disparate”, ganhando confiança no manuseio deste brinquedo que lhe permite tornar a realidade solvente para o seu espírito, para, assim, impor-se-lhe, Herberto sugere que ele junte “ao cravo aramaico o adjectivo turco branco”. “Encontra-se, neste momento, em plena vertigem paranóica-idiomática. É um perfeito irrealista – e eu amo-o”.
A antologia do poeta português abria com uma recolha de poemas do Antigo Egipto, encabeçada por um longo excerto do célebre “Livro dos Mortos”: “Eu sou ontem e conheço amanhã. Posso renascer – mistério da alma/ criadora dos deuses, alimentando os que aportam a oeste do céu, leme do leste, senhor dos rostos que vêem pelo seu próprio esplendor (…)”
Professor de latim na Universidade Federal do Paraná, Gontijo Flores viu “carvão :: capim” publicado este ano no Brasil, isto depois de o livro ter sido publicado primeiro em Portugal, pela Artefacto. Por cá, como o ouvido dos indígenas só amolece com o canto de passaritos que se dão bem nas varandas, engaiolados, ninguém deu por ele. É um fenómeno a que um dos poemas deste volume parece aludir. “Mimesis Via Hegel” é o título. E diz: “O rouxinol naturalmente/ agrada porque/ ouvimos o animal/ emitir na sua inconsciência/ natural/ sons que se/ assemelham ao/ sentimento/ a imitação do humano/ pela natureza”. E uma revelação, em linha com esta, é a de certos ornitólogos que se deram conta de que os pardais e outros pássaros urbanizados têm hoje no seu repertório uma série de respostas para o ruído que agora os envolve. Se escutarmos com atenção, alguns, ao invés de piar, parece que buzinam.
Isto para vincar como, também na poesia, sempre que se introduz algo de “bizarramente pessoal”, aumenta o risco de não se ser ouvido, de o poeta estar numa frequência que os sensores da crítica, como do público, simplesmente nem registam. Já no Brasil, o percurso fulgurante de Gontijo que, além de ser um dos responsáveis pelo blogue “escamandro” – hoje, o mais activo e empenhado órgão de divulgação de poesia e tradução crítica em português –, em seis anos, entre livros de poesia, traduções, ensaios e antologias, publicou 11 títulos, garantiu a atenção que “carvão :: capim” exige. Numa excelente recensão crítica para o “Estadão”, Érico Nogueira destacava, entre os feitos de Gontijo como tradutor, “as nada singelas ‘Elegias de Sexto Propércio’ e todos os quatro volumes de ‘A Anatomia da Melancolia’, clássico do inglês Robert Burton”, indicando que, neste caso, a quantidade não dispensava a qualidade.
A partir do contorno de vários dos poemas deste livro, o leitor sente a tentação de proceder a uma arqueologia, pois não poucas vezes essa linha exterior parece ganhar firmeza a partir de uma série de rascunhos, e assim é uma qualidade um tanto convulsa aquilo que os torna mais cativantes. Há mesmo alguns em que a página parece tremer (um magnífico exemplo é o poema “Rotas”) e o sentido balança; o rabo de um verso é cortado, fica a mexer-se, e logo serve de cabeça a um outro. Uma sensação de trânsito perpassa-os como se fossem composições que estão tão mais vivas quanto não arredondam, parecem inacabadas. Jogando com variantes, entre si os poemas também variam muito na extensão e no tom. Uns mais claros, outros arriscando algum hermetismo. Pululam de referências, e se o livro é atravessado de certa atitude política, as questões que marcam a actualidade parecem surgir entre aspas – um rumor do mundo a que o poema não pode nem quer ser indiferente. Mas, ao invés de “flores morais”, estes poemas produzem reflexos inquietantes e que não se deixam consignar nos baixios da indignação. Tantos versos parecem debater-se com o próprio contorno, dragar o seu sentido até só restarem escolhos: “Talvez como um salário da loucura/ ou das tamanhas solidões/ que calharam de caber/ nesta noite o sol/ vem soluçando aos nossos copos/ ouro no ouro/ enquanto ainda restam/ dedos braços alçados goela/ perdura uma ânsia/ por nada esta escuma”.
É um livro instável de um poeta que não parece tão preocupado em afirmar uma voz quanto se mostra empenhado em afundar-se na imperfeição, e “ferir/ no real a fundura/ de sombra da escrita”. Talvez o perigo de quem muito cedo procura acertar consigo, fechar-se numa paisagem de espelhos voltados uns sobre os outros, seja o de ficar condenado a sustentar uma ficção perigosamente estreita, reduzindo o real à sensação de se fechar num esquife, tresandando a si mesmo. Por outro lado, ao afirmar-se como um poeta contemporâneo que, dedicado ao estudo dos clássicos greco-latinos, ocupa “um lugar confortável de herdeiro tanto das formas arcaicas como das vanguardas”, para nos cativar Gontijo não precisa de mais argumentos do que a sua vontade de deixar um sítio por outro, de ser “um aventureiro completamente perdido”. O seu desastre, a sua imperfeição não é um pulso que se extingue debaixo da terra. Anda ao relento, erra e deixa-se ler à luz de astros que nos coroam há muito – tantos deles já mortos, prolongando há séculos este desmame. Se há quem a isto prefira as imitações baratas do humano, é deixá-los com os rouxinóis e a sua inconsciência que tão bem soa. Deste lado, pulsa o desassossego onde pousam pássaros sem nome, cujo canto parece descoser o mundo.