Há pouco mais de dois anos, Zelda la Grange, que foi secretária particular de Nelson Mandela nos últimos 11 anos da vida do antigo presidente da África do Sul, passou por Lisboa para promover o seu livro “Bom dia, Senhor Mandela”. Na altura, no meio de todos os escândalos relacionados com o então presidente sul–africano, Jacob Zuma (que se demitiu entretanto), garantia que, apesar de tudo, o legado de Mandela não tinha sido destruído pelo Congresso Nacional Africano (ANC na sigla em inglês), que governa o país desde 1994.
“O legado é suficientemente forte para resistir a qualquer traição, seja ela qual for. Não penso que esteja no poder de uns quantos políticos danificar o seu legado porque ele é muito mais profundo que isso”, explicava. “Acho que avançámos como país, penso que temos de dar o exemplo, que era o que tínhamos nele, uma pessoa que agia de tal forma que o sul-africano comum queria garantir o aprofundamento da sua obra.”
Ter a figura de Mandela como referência é, ao mesmo tempo, uma bênção e uma maldição. E a segunda está ligada à primeira, porque a maldição prende-se com uma dimensão de estadista tão grande que tornou difícil aos que vieram a seguir caminhar com os sapatos por ele deixados.
“Hoje temos um vazio de liderança na África do Sul e torna-se difícil que haja alguém que se erga para mostrar o caminho. É isso o que nos falta na África do Sul. Há muita gente comum que ainda acredita, não tanto na nação arco-íris, mas que, avançando, há espaço para todos, temos de trabalhar, precisamos de trabalhar em conjunto”, dizia a colaboradora de duas décadas de Mandela.
Zelda la Grange começou a trabalhar para Mandela quando este chegou à presidência sul-africana, em maio de 1994. O então presidente não defendia apenas por palavras a reconciliação nacional, a nação arco-íris, onde todas as raças e credos poderiam viver em conjunto, queria aplicar a ideia na prática. Aquela jovem africânder alta e loura, que tinha votado contra ele e vinha de uma família que vivera e defendera o regime do apartheid, tinha de trabalhar na assessoria presidencial. Ao longo dos anos, a relação tornou-se cada vez mais próxima, à medida que crescia a admiração e dedicação da jovem racista por aquele homem que se tornara presidente contra a sua vontade. Uma relação que se tornou tão próxima que se estendeu para lá da presidência: nos últimos 11 anos da vida de Mandela, Zelda foi a sua secretária particular.
No livro que escreveu, Zelda la Grange é honesta no autorretrato de jovem branca racista sul-africana que votou pela manutenção do apartheid até se transformar numa mulher capaz de ver mais além: “É errado dizer que hoje não vejo as cores, porque vejo, mas respeito as diferenças, respeito a pessoa, independentemente da aparência, do estado, da riqueza ou seja do que for. Não é tanto a ideia do multiculturalismo, da multicor, mas do respeito pela diversidade que nós, sul-africanos, não percebíamos. Falar em rainbow nation dá ideia de que ignoramos as diferenças, mas não é verdade, apenas temos de as respeitar.”
Como explicou o próprio Madiba – nome pelo qual era carinhosamente tratado e que é o nome do clã a que pertencia -, no seu discurso do Dia da Reconciliação Nacional de 1995, “o arco-íris acabou por se tornar o símbolo da nossa nação. Estamos a transformar a variedade das nossas línguas e culturas, que antes eram usadas para nos dividir, na fonte da nossa força e riqueza”.
A traição do legado de Mandela de que fala La Grange tem a ver com a ideia, defendida hoje por muitos políticos dentro do ANC, de que a África do Sul tem de ser mais o país dos negros e não um país onde convivem raças e credos.
Em 2015, Zelda publicou um tweet que causou polémica, acusando o então presidente Jacob Zuma de estar a fazer com que os brancos se sentissem indesejados na África do Sul. Acabou por pedir desculpa pela afirmação, não por estar errada, apenas “por ter singularizado os brancos” quando a questão não está limitada. Zuma fazia “as pessoas desrespeitarem aquilo que são e de onde vêm”, fazia com que se sentissem “desadequadas”. “Não pedi desculpa por dizer isto, mas por ter dado mais importância à minha brancura. Sinto-me ameaçada da mesma forma que toda a gente se sente”, acrescentava.
Mesmo assim, sublinhava, “há muita gente comum que ainda acredita, não tanto na nação arco-íris, mas que, avançando, há espaço para todos, temos de trabalhar, precisamos de trabalhar em conjunto”.
Abnegação esquecida Quase cinco anos depois da morte de Nelson Mandela, e a 18 do fim da sua presidência, a África do Sul já esteve pior, mas também já esteve melhor. Sobretudo, não é aquele país que Madiba gostaria que fosse. Queria que houvesse mais progresso, menos pobreza, que muito mais gente tivesse acesso a coisas simples como saneamento; porém, o que lhe doeria mais seria “o facto de as pessoas terem esquecido a abnegação, de hoje girar tudo apenas à volta do ganho pessoal”, como explicava a sua secretária.
“O que se está a passar agora? Porque se comportam as pessoas daquela forma no parlamento? E eu digo estas coisas muitas vezes e meto-me em muitos sarilhos, mas é verdade. É por isso que falo em vazio de liderança porque toda a gente participa neste desrespeito pelo outro, no desrespeito pelo governo, no desrespeito pela autoridade. Nelson Mandela garantia que toda a gente era ouvida, não acusava as pessoas ou, pelo menos, não as responsabilizava hoje por coisas que não podiam ser mudadas. Só responsabilizava as pessoas pelas coisas agora, para garantir que funcionavam.”
O racismo é ainda muito forte na África do Sul, não que ele não exista noutros lados, só que ali “aparece mais na primeira linha, nota-se mais”, sublinhava Zelda la Grange. Por exemplo, mesmo em relação à sua família, custa-lhe ainda falar com algumas pessoas e aprendeu a evitar deixar-se apanhar em situações de pregar no deserto: “Porque, se ao fim de 22 anos não se consegue ver, pouco posso fazer para ajudar essa pessoa.”
Se há brancos que ainda não percebem, há negros que ainda criticam. Robert Mugabe, o ex-presidente do Zimbabué, chamou a Mandela o “santo que tentou agradar aos brancos”. Para Zelda la Grange, é muito simples: “Quem diz isso não estava lá naqueles anos em que podíamos ter deitado fogo ao país, todos nós, brancos e negros da África do Sul.” Não fosse Mandela a agarrar o rastilho nas mãos e o barril de pólvora da África do Sul pós-apartheid teria explodido numa guerra civil inter-racial de consequências imprevisíveis. “Foi preciso a liderança de uma pessoa como ele para evitar isso. As pessoas não conseguem acreditar como é que não tivemos uma guerra civil.”
Para os que considerem isto um exagero, Zelda la Grange usou o conhecimento de quem estava do outro lado da barricada para garantir que foi mesmo assim, que os brancos estavam preparados para a guerra: “Estávamos. As pessoas comuns prepararam-se. Armazenámos comida e água. Estávamos à espera de uma guerra civil. O exército, as forças de defesa ainda estavam nas mãos do regime do apartheid. Quando o Sr. Mandela perguntou ao seu braço armado ‘quantas armas tem o exército do governo do apartheid?’ e eles responderam que não sabiam, quando lhes perguntou ‘quantos homens têm eles?’ e também não sabiam, disse-lhes: ‘Como podemos entrar em guerra quando não sabemos a força do inimigo?’ Se tivéssemos tido uma guerra civil, centenas de milhares de pessoas teriam sido mortas.”
À medida que os anos passam e Mandela deixa de ser figura presente para se entregar nos braços da História, que se dá a muitas interpretações, a ação de Madiba perde o seu contexto e hoje haverá muitos jovens negros sul-africanos capazes de tomar as palavras de Mugabe como suas. “Ele morreu acreditando que tinha feito tudo ao seu alcance para fazer do mundo um lugar melhor. É a frustração atual que leva as pessoas a acusar o passado, a querer culpar alguém. O facto é que, e isso aprendi com ele, culpar não resolve nada, não conserta nada e não ajuda. Não culpes o passado ou o legado de Mandela, resolve as coisas agora.”