Despenalizar a Eutanásia não é uma condição jusnaturalista, nem uma resposta do Estado “às tendências de cada tempo”, nem tão pouco um seu “imperativo” como referiu o líder do PSD num recente artigo de opinião. Isso constitui, de resto, um argumentário revesso, demasiado simplista, pouco estruturado e concomitantemente antagónico com o sentido geral da garantia e do dever proteção do direito à vida cujo conteúdo jurídico objetivo o reveste de forma incontornável como um direito fundamental prioritário onde reside o alicerce de manifestação de um conjunto de outros direitos tais como a dignidade da pessoa humana, a autodeterminação pessoal, a integridade física e psíquica ou a igualdade, máxime a igualdade constitucional de todas as vidas.
O direito à vida no plano jurídico-constitucional português reveste latitude superior à própria Declaração Universal dos Direitos Humanos, pois é sob a perentória capa da inviolabilidade que ele se manifesta (art. 24 n1) secundando-se quer pela proibição absoluta da pena de morte (art. 24 n2) quer pela impossibilidade de extradição de criminoso por crime cometido com semelhante pena no Estado requisitante (art. 33 n6). A inviolabilidade da vida constitui, de resto, o restritíssimo grupo de direitos fundamentais insuscetíveis de suspensão como é, em si mesmo, um valor inalienável do Estado de Direito Democrático. É um direito incumbido de proteção do Estado independentemente dos seus titulares tornando-o, desse modo, insuscetível de renúncia ou de disposição de terceiros. Claro que “as tendências de cada tempo”, utilizando a dúbia expressão do líder do PSD, obriga o direito a conjugá-las com axiologia imperativa da nossa lei fundamental, ainda que vivificada com determinado espaço de respiração interpretativo, procurando justificar a sua solução com aquilo que a sociedade cumpre. Foi assim com a controversa clarificação jurídica sobre o momento inicial da vida, que de resto contribuiu para uma resposta jurídica positiva ao clamor social pela interrupção voluntária da gravidez, e terá de ser assim necessariamente com a dilucidação sobre o seu momento terminal, não obstante ela, de certa maneira, ter já atraído atenção do legislador na Lei 141/99 que estabelece a definição jurídica de morte.
A eutanásia não é um processo simplista nem de fácil apreensão. Antes é uma ideia que assume variadas formas cuja apreensão não se facilita porquanto surgem dessintonias a respeito da noção de doente terminal. Destarte, o fenómeno clarificador da eutanásia multiplicou-se em conceitos e sub-representações (ativa, passiva, direta, indireta, voluntária e involuntária) sem que deles se conseguissem retirar noções jurídicas objetivas que permitam ao legislador tomar uma posição de consequências indiscutíveis para o nosso ordenamento jurídico não obstante a “simplificação” penal que a engloba nos tipos legais de crime consagrados nos art. 133 a 135 do Código Penal. Esta discussão sobre a Eutanásia enferma de laivos paternalistas correspondentes a uma interpretação da vontade social que, no mínimo, devemos desconfiar. Em primeiro lugar porque admite sem mais que a opção pela eutanásia é feita de forma consciente, voluntária e informada não exprimindo sequer dúvidas quanto ao grau de liberdade e de racionalidade da decisão de um doente, em elevado grau de sofrimento, em pôr termo à sua vida renunciando ao maior dos seus direitos fundamentais (ainda que este caminhe de mão dada com a sua própria liberdade) sem que, para o efeito, não subsistam dúvidas inequívocas da autenticidade dessa vontade quando em confronto com o seu sofrimento.
Em segundo lugar porque trespassa para a mão de terceiros, ainda que médicos, um suprapoder impossível de se assegurar como autêntico e não meramente circunstancial pelo sofrimento em causa tornando a renuncia à vida não apenas numa liberdade pessoal, mas numa envolvência determinante de um terceiro na concretização dessa decisão concedendo-lhe, para o efeito, meros critérios de imunidade. Ora isto, a par da disponibilidade de meios públicos para o efeito, não constitui por si com evidência um “imperativo” do Estado.
As dúvidas são, como se compreende, imensas. A política legislativa deve evitar a todo o custo sucumbir perante as sensações interpretativas daquilo a que lhe parece corresponder à vontade coletiva. Deve munir-se de certezas inequívocas sobretudo quando estão em causa restrições de direitos. Uma coisa será certa. Caso algum dos diplomas mereça aprovação parlamentar o Tribunal Constitucional não pode ficar excluído de pronúncia sobre a sua constitucionalidade, quer seja ela por via de fiscalização preventiva, cuja iniciativa competirá ao Presidente da República, quer seja por via de fiscalização sucessiva por iniciativa de um décimo dos deputados em funções. Os critérios normativos que definem a morte, ainda que amplamente dinâmicos por força do mutante conhecimento científico, devem ser conformes aos parâmetros materiais da Constituição. É assim com a vida e terá de ser, inevitavelmente, com a morte.