Factos inúteis?


Se os artigos inúteis, anacrónicos, ideologicamente marcados ou claramente nocivos da CRP fossem eliminados, mais de dois terços do texto constitucional e, com eles, os bons pretextos para alguns dos acórdãos mais absurdos do Tribunal Constitucional desapareceriam


É um facto consensual entre quem reflete sobre a matéria que a Constituição da República Portuguesa (CRP) é um texto datado e fruto de circunstâncias muito particulares: o Pacto MFA-Partidos, que impôs em 1975 um modelo social e económico ao país independentemente da vontade maioritária e que foi, à época, o compromisso possível para poder haver eleições para a Constituinte.

Capítulos inteiros da CRP pertenceriam com muito mais propriedade à lei comum. Para dar um exemplo, veja-se o capítulo iii, sobre direitos e deveres culturais, um enunciado de princípios ideologicamente marcados e de detalhes inúteis, muitos deles, aliás, ultrapassados há décadas pela realidade. 

O capítulo ii, sobre direitos e deveres sociais, é outra coleção de banalidades e generalidades totalmente inúteis, salvo para estear pontos de vista ideológicos normalmente contrários ao bom senso.

E que dizer da parte ii, sobre organização económica, e de artigos tão relevantes como o que prescreve que a organização económica assenta na “coexistência do setor público, do setor privado e do setor cooperativo e social de propriedade dos meios de produção” (há que atentar na fraseologia, fruto da sua tão marcada época…)?

O artigo 82.o reitera, aliás, a ideia cómica da coexistência dos três setores, detalhando melhor e mais inutilmente o inexistente setor “cooperativo e social” para, logo adiante, o artigo 86.o proclamar que “o Estado incentiva [a mera ideia é ridícula] a atividade empresarial em particular de pequenas e médias empresas”… 

O título ii da parte ii dedica-se a essa coisa tão atual como os «Planos» de de-senvolvimento económico e social. Olá, anos 50 (do século passado).

Existem pérolas como o artigo 95.o, que exige a eliminação dos latifúndios, baseada num conceito indeterminado: “exploração agrícola que tenha dimensão excessiva do ponto de vista dos objetivos de política agrícola”.

No que toca à organização judicial (título v da parte iii), a CRP não se dispensou de impor a existência de um Supremo Tribunal Administrativo como órgão superior da hierarquia dos tribunais administrativos e fiscais, impedindo assim o legislador comum de optar por formas mais racionais de regulação dessa jurisdição especializada.

Se os artigos inúteis, anacrónicos, ideologicamente marcados ou claramente nocivos da CRP fossem eliminados, mais de dois terços do texto constitucional e, com eles, os bons pretextos para alguns dos acórdãos mais absurdos do Tribunal Constitucional desapareceriam.

Mas há também omissões, algumas muito reveladoras. O artigo 149.o, a propósito dos círculos eleitorais, dispõe que os deputados à Assembleia da República são eleitos por círculos eleitorais geograficamente definidos na lei, que pode determinar a existência de círculos plurinominais ou uninominais. Certo. 

Diz a seguir, no artigo 150.o, que são elegíveis os cidadãos portugueses eleitores. Perfeito. 

Omite é uma coisa que remete para o artigo seguinte (151.o): a exigência de que as candidaturas sejam apresentadas pelos partidos políticos. Não o diz, mas vai implícito, que se trata das candidaturas quer aos círculos plurinominais, quer aos círculos uninominais. 

Por outras palavras, o que o artigo 150.o devia dizer, se fosse sério, é que são elegíveis os cidadãos portugueses eleitores que sejam apresentados por um partido político. Ou seja, não há independentes.

Agora é lícito que nos interroguemos: para que servem círculos uninominais que coexistam com círculos plurinominais (ou seja, com listas constituídas) se a estes círculos de um só nome não podem concorrer cidadãos independentes, mas apenas os patrocinados pelos partidos políticos? 

Há quem defenda que um primeiro passo é o de transpor para a lei eleitoral aquilo que já está previsto na CRP desde a revisão de 1997 – a criação de círculos uninominais que são constitucionalmente admitidos, deixando para uma segunda fase a possibilidade de candidaturas independentes a esses círculos, que exigiria uma alteração constitucional.

É um ponto de vista inteiramente razoável e eminentemente realista, mas neste momento apetece-me ser irrazoável e irrealista: olhando a vol d’oiseau para a CRP e para o nosso bloqueadíssimo sistema político, vejo tanta coisa a necessitar de remédio ou pura eliminação que não descortino por que razão não se há de querer já a possibilidade de criar candidaturas independentes, ou seja, que não sejam apresentadas pelos partidos políticos.

Essa é a única mudança verdadeira que pode alterar os paradigmas institucionais do país e que, por si, é suscetível de trazer para a Assembleia da República aqueles que, para além dos partidos e de distinções completamente anacrónicas, representam Portugal. 

Os partidos acham essa ideia um anátema. Com certeza. É por isso que nos devemos bater por ela antes que venha alguém que defenda que, para regenerar o regime democrático, é preciso acabar com ele…

Ex-secretário de Estado da Justiça. Advogado, Subscritor do “Manifesto: Por Uma Democracia de Qualidade”


Factos inúteis?


Se os artigos inúteis, anacrónicos, ideologicamente marcados ou claramente nocivos da CRP fossem eliminados, mais de dois terços do texto constitucional e, com eles, os bons pretextos para alguns dos acórdãos mais absurdos do Tribunal Constitucional desapareceriam


É um facto consensual entre quem reflete sobre a matéria que a Constituição da República Portuguesa (CRP) é um texto datado e fruto de circunstâncias muito particulares: o Pacto MFA-Partidos, que impôs em 1975 um modelo social e económico ao país independentemente da vontade maioritária e que foi, à época, o compromisso possível para poder haver eleições para a Constituinte.

Capítulos inteiros da CRP pertenceriam com muito mais propriedade à lei comum. Para dar um exemplo, veja-se o capítulo iii, sobre direitos e deveres culturais, um enunciado de princípios ideologicamente marcados e de detalhes inúteis, muitos deles, aliás, ultrapassados há décadas pela realidade. 

O capítulo ii, sobre direitos e deveres sociais, é outra coleção de banalidades e generalidades totalmente inúteis, salvo para estear pontos de vista ideológicos normalmente contrários ao bom senso.

E que dizer da parte ii, sobre organização económica, e de artigos tão relevantes como o que prescreve que a organização económica assenta na “coexistência do setor público, do setor privado e do setor cooperativo e social de propriedade dos meios de produção” (há que atentar na fraseologia, fruto da sua tão marcada época…)?

O artigo 82.o reitera, aliás, a ideia cómica da coexistência dos três setores, detalhando melhor e mais inutilmente o inexistente setor “cooperativo e social” para, logo adiante, o artigo 86.o proclamar que “o Estado incentiva [a mera ideia é ridícula] a atividade empresarial em particular de pequenas e médias empresas”… 

O título ii da parte ii dedica-se a essa coisa tão atual como os «Planos» de de-senvolvimento económico e social. Olá, anos 50 (do século passado).

Existem pérolas como o artigo 95.o, que exige a eliminação dos latifúndios, baseada num conceito indeterminado: “exploração agrícola que tenha dimensão excessiva do ponto de vista dos objetivos de política agrícola”.

No que toca à organização judicial (título v da parte iii), a CRP não se dispensou de impor a existência de um Supremo Tribunal Administrativo como órgão superior da hierarquia dos tribunais administrativos e fiscais, impedindo assim o legislador comum de optar por formas mais racionais de regulação dessa jurisdição especializada.

Se os artigos inúteis, anacrónicos, ideologicamente marcados ou claramente nocivos da CRP fossem eliminados, mais de dois terços do texto constitucional e, com eles, os bons pretextos para alguns dos acórdãos mais absurdos do Tribunal Constitucional desapareceriam.

Mas há também omissões, algumas muito reveladoras. O artigo 149.o, a propósito dos círculos eleitorais, dispõe que os deputados à Assembleia da República são eleitos por círculos eleitorais geograficamente definidos na lei, que pode determinar a existência de círculos plurinominais ou uninominais. Certo. 

Diz a seguir, no artigo 150.o, que são elegíveis os cidadãos portugueses eleitores. Perfeito. 

Omite é uma coisa que remete para o artigo seguinte (151.o): a exigência de que as candidaturas sejam apresentadas pelos partidos políticos. Não o diz, mas vai implícito, que se trata das candidaturas quer aos círculos plurinominais, quer aos círculos uninominais. 

Por outras palavras, o que o artigo 150.o devia dizer, se fosse sério, é que são elegíveis os cidadãos portugueses eleitores que sejam apresentados por um partido político. Ou seja, não há independentes.

Agora é lícito que nos interroguemos: para que servem círculos uninominais que coexistam com círculos plurinominais (ou seja, com listas constituídas) se a estes círculos de um só nome não podem concorrer cidadãos independentes, mas apenas os patrocinados pelos partidos políticos? 

Há quem defenda que um primeiro passo é o de transpor para a lei eleitoral aquilo que já está previsto na CRP desde a revisão de 1997 – a criação de círculos uninominais que são constitucionalmente admitidos, deixando para uma segunda fase a possibilidade de candidaturas independentes a esses círculos, que exigiria uma alteração constitucional.

É um ponto de vista inteiramente razoável e eminentemente realista, mas neste momento apetece-me ser irrazoável e irrealista: olhando a vol d’oiseau para a CRP e para o nosso bloqueadíssimo sistema político, vejo tanta coisa a necessitar de remédio ou pura eliminação que não descortino por que razão não se há de querer já a possibilidade de criar candidaturas independentes, ou seja, que não sejam apresentadas pelos partidos políticos.

Essa é a única mudança verdadeira que pode alterar os paradigmas institucionais do país e que, por si, é suscetível de trazer para a Assembleia da República aqueles que, para além dos partidos e de distinções completamente anacrónicas, representam Portugal. 

Os partidos acham essa ideia um anátema. Com certeza. É por isso que nos devemos bater por ela antes que venha alguém que defenda que, para regenerar o regime democrático, é preciso acabar com ele…

Ex-secretário de Estado da Justiça. Advogado, Subscritor do “Manifesto: Por Uma Democracia de Qualidade”