Delação premiada. Um negócio jurídico atípico ou dilema ético-moral? (parte II)


Com a figura do arguido-arrependido vai surgindo a figura do arguido-colaborador, de resto, antagónicos na sua essência e com objetivos incomensuravelmente distintos


Na “Luta pelo Direito”, Rudolf von Ihering previu um Estado incapaz de desvendar crimes diante das sofisticações e complexidades decorrentes da modernidade e preconizou: “Um dia, os juristas vão ocupar-se do direito premial. E farão isso quando, pressionados pelas necessidades práticas, conseguirem introduzir a matéria premial dentro do direito, isto é, fora da mera faculdade e do arbítrio. Delimitando-o com regras precisas, nem tanto no interesse do aspirante ao prémio, mas, sobretudo, no interesse superior da coletividade” – um cenário, semelhante ao atual, onde o direito premial surgia como o meio mais eficaz de combate à insegurança e danos no Estado de direito democrático que o fenómeno da criminalidade organizada, nomeadamente a corrupção, veio a concretizar. 

Como vimos na semana anterior, o direito premial é um instituto jurídico criador de um negócio jurídico atípico em que se atribui um “prémio” ao agente criminoso delator que, de um modo decisivo, colabore com as diversas diligências probatórias na expetativa de recebimento de um tratamento penal especialmente atenuante ou dispensador de pena. É, noutras palavras, um incentivo criado pelo legislador para uma colaboração do agente criminoso com a justiça. Ainda que o instituto do direito premial se encontre positivado em diversos países, sendo encarado, de uma maneira geral, como um meio eficaz de obtenção de prova e, por conseguinte, de combate a novos fenómenos de criminalidade, ele, como delação e como regime aplicável à semelhança do Brasil, não se encontra exatamente previsto no ordenamento jurídico-penal português. 

Ainda que nosso Código Penal encontremos, na sua Parte Geral, em concreto nos artigos 71.o a 73.o, os termos de atenuação geral e especial das penas, atribuindo especial relevância ao arrependimento do agente criminoso, é na sua Parte Especial, em concreto nos artigos 368.o-A (branqueamento) e 374.o-B (dispensa ou atenuação de pena do crime de corrupção ativa), a par de um conjunto de Leis Penais Extravagantes (como são caso a Lei de Combate ao Terrorismo ou a Legislação de Combate à Droga), que o nosso instituto jurídico-penal mais se aproxima de um direito premial. 

Destarte, simultaneamente com a figura do arguido-arrependido vai surgindo a figura do arguido-colaborador, de resto, antagónicos na sua essência e com objetivos incomensuravelmente distintos. Pois, enquanto ao arguido-arrependido releva substancialmente a reparação do dano como consequência primacial do seu arrependimento, independentemente da colaboração que exerce, para o arguido-colaborador, a reparação do dano é uma consequência irrelevante; ele foca-se apenas numa visão egoística da sua condição, socorrendo-se de um negócio jurídico com o Estado para atenuar ou dispensar uma previsível consequência da sua atuação, oferecendo-lhe em troca elementos probatórios decisivos para a descoberta da verdade processual. 

Ora, esta dupla qualidade levanta um conjunto de dilemas potencialmente irreparáveis quer do ponto de vista processual, quer do ponto de vista constitucional ou ainda do ponto de vista ético-moral. 

Não obstante o artigo 32.o n.o 5 da nossa lei fundamental determinar que o processo criminal tem estrutura acusatória, importa perceber que esta não é a sua verdadeira matriz. O nosso processo penal assume uma dimensão mista que se consubstancia nalgumas características típicas de um sistema inquisitório com as de um modelo puramente acusatório. Ainda que possamos considerá-las doutrinariamente antagónicas, a verdade é que elas se conjugam no nosso sistema processual penal. Se, de um lado, ou numa primeira fase do processo, nos confrontamos com um dominus do processo que se orienta pela busca da verdade material em defesa da sociedade, nas seguintes fases inicia-se um duelo entre acusador e acusado, onde o juiz, passivo, assume um papel absolutamente imparcial e centrado nas garantias do cidadão em que apenas lhe cabe a apreciação objetiva da prova produzida sob a égide de um ónus exclusivo do acusador. 

Assim, enquanto o sistema acusatório é caracterizado pelo princípio do contraditório, da publicidade da igualdade de armas ou da oralidade, o sistema inquisitório (inicial do processo penal) é um modelo do tipo secreto, escrito e tendencialmente sem contraditório. Abordaremos o resto na próxima semana. 


Delação premiada. Um negócio jurídico atípico ou dilema ético-moral? (parte II)


Com a figura do arguido-arrependido vai surgindo a figura do arguido-colaborador, de resto, antagónicos na sua essência e com objetivos incomensuravelmente distintos


Na “Luta pelo Direito”, Rudolf von Ihering previu um Estado incapaz de desvendar crimes diante das sofisticações e complexidades decorrentes da modernidade e preconizou: “Um dia, os juristas vão ocupar-se do direito premial. E farão isso quando, pressionados pelas necessidades práticas, conseguirem introduzir a matéria premial dentro do direito, isto é, fora da mera faculdade e do arbítrio. Delimitando-o com regras precisas, nem tanto no interesse do aspirante ao prémio, mas, sobretudo, no interesse superior da coletividade” – um cenário, semelhante ao atual, onde o direito premial surgia como o meio mais eficaz de combate à insegurança e danos no Estado de direito democrático que o fenómeno da criminalidade organizada, nomeadamente a corrupção, veio a concretizar. 

Como vimos na semana anterior, o direito premial é um instituto jurídico criador de um negócio jurídico atípico em que se atribui um “prémio” ao agente criminoso delator que, de um modo decisivo, colabore com as diversas diligências probatórias na expetativa de recebimento de um tratamento penal especialmente atenuante ou dispensador de pena. É, noutras palavras, um incentivo criado pelo legislador para uma colaboração do agente criminoso com a justiça. Ainda que o instituto do direito premial se encontre positivado em diversos países, sendo encarado, de uma maneira geral, como um meio eficaz de obtenção de prova e, por conseguinte, de combate a novos fenómenos de criminalidade, ele, como delação e como regime aplicável à semelhança do Brasil, não se encontra exatamente previsto no ordenamento jurídico-penal português. 

Ainda que nosso Código Penal encontremos, na sua Parte Geral, em concreto nos artigos 71.o a 73.o, os termos de atenuação geral e especial das penas, atribuindo especial relevância ao arrependimento do agente criminoso, é na sua Parte Especial, em concreto nos artigos 368.o-A (branqueamento) e 374.o-B (dispensa ou atenuação de pena do crime de corrupção ativa), a par de um conjunto de Leis Penais Extravagantes (como são caso a Lei de Combate ao Terrorismo ou a Legislação de Combate à Droga), que o nosso instituto jurídico-penal mais se aproxima de um direito premial. 

Destarte, simultaneamente com a figura do arguido-arrependido vai surgindo a figura do arguido-colaborador, de resto, antagónicos na sua essência e com objetivos incomensuravelmente distintos. Pois, enquanto ao arguido-arrependido releva substancialmente a reparação do dano como consequência primacial do seu arrependimento, independentemente da colaboração que exerce, para o arguido-colaborador, a reparação do dano é uma consequência irrelevante; ele foca-se apenas numa visão egoística da sua condição, socorrendo-se de um negócio jurídico com o Estado para atenuar ou dispensar uma previsível consequência da sua atuação, oferecendo-lhe em troca elementos probatórios decisivos para a descoberta da verdade processual. 

Ora, esta dupla qualidade levanta um conjunto de dilemas potencialmente irreparáveis quer do ponto de vista processual, quer do ponto de vista constitucional ou ainda do ponto de vista ético-moral. 

Não obstante o artigo 32.o n.o 5 da nossa lei fundamental determinar que o processo criminal tem estrutura acusatória, importa perceber que esta não é a sua verdadeira matriz. O nosso processo penal assume uma dimensão mista que se consubstancia nalgumas características típicas de um sistema inquisitório com as de um modelo puramente acusatório. Ainda que possamos considerá-las doutrinariamente antagónicas, a verdade é que elas se conjugam no nosso sistema processual penal. Se, de um lado, ou numa primeira fase do processo, nos confrontamos com um dominus do processo que se orienta pela busca da verdade material em defesa da sociedade, nas seguintes fases inicia-se um duelo entre acusador e acusado, onde o juiz, passivo, assume um papel absolutamente imparcial e centrado nas garantias do cidadão em que apenas lhe cabe a apreciação objetiva da prova produzida sob a égide de um ónus exclusivo do acusador. 

Assim, enquanto o sistema acusatório é caracterizado pelo princípio do contraditório, da publicidade da igualdade de armas ou da oralidade, o sistema inquisitório (inicial do processo penal) é um modelo do tipo secreto, escrito e tendencialmente sem contraditório. Abordaremos o resto na próxima semana.