A repentina ética da República


O drama desta gentinha sem azimute de valores e de princípios é que existem sinais de que a exigência cívica vai mudando e já não se compadece com a opacidade, a incoerência e a impunidade de outrora


Tomados por uma repentina salvaguarda da ética e da legalidade da República, os que estiveram calados durante uma semana após a publicação da notícia dos abonos do GES a um ministro da República em funções querem agora que Manuel Pinho fale numa comissão parlamentar quando ainda nem aprovaram a demanda, com ou sem a força do estatuto de comissão de inquérito. Os dados tornados públicos, a corresponderem à verdade, são de uma enorme gravidade, mas, infelizmente, não são virgens em matéria de “diz-se que”.

O problema é que a República Portuguesa se conformou com a ideia de que “a ética da República é a lei” – conveniência mais do que suficiente para albergar os impulsos de contorno à letra da lei, para aproveitar os vazios e as omissões de regulação nacional e internacional e para reconfortar um sentido cívico medíocre na política, na economia, na informação e na sociedade em geral. Sem uma perceção individual de equilíbrio, de que a direitos correspondem igualmente deveres, sem um quadro de valores exigentes e de elevado sentido ético, basta cumprir a lei para que se abram enormes possibilidades de modelação dos quadros de avaliação das situações. Estaremos, assim, no domínio da geometria variável da avaliação da ética da República e até mesmo da legalidade, tão a gosto de alguns protagonistas políticos tão aligeirados em silêncios, em declarações inócuas ou em afirmações próximas das encriptações. O drama desta gentinha sem azimute de valores e de princípios é que existem sinais de que a exigência cívica vai mudando e já não se compadece com a opacidade, a incoerência e a impunidade de outrora. Mesmo que as escolas e as famílias muitas das vezes persistam em educar para replicar em vez de exercitar o pensamento e o espírito crítico, que a cidadania ainda esteja num baixo nível de exigência e de participação e que o jornalismo sério de investigação seja cada vez mais uma atividade em vias de extinção, o nosso tempo mudou mesmo. Ainda que muitos protagonistas públicos continuem a comportar-se como se o tempo fosse de há décadas, existem alterações e, globalmente, vão num sentido de evidenciar a insustentabilidade do tempo da República e da justiça com o tempo mediático dos acontecimentos, reais ou virtuais.

A ética da República, a tal plasmada na lei, será sempre uma treta se não contar com um quadro individual de valores e referências que contribuam para o cumprimento da legislação sem desvios imorais. Em tempos, nomeado para um cargo político público, tinha direito a um subsídio de habitação por estar em funções a mais de umas dezenas de quilómetros do meu domicílio fiscal. Como estava a residir na casa de um familiar, entendi, por razões éticas, não ativar esse direito conferido pela lei e pela ética da República. Será fácil imaginar a incredulidade dos serviços perante a situação, que sempre entendi do mais elementar bom senso.

Como em qualquer regime, coloca-se sempre a questão de se saber quem poderá assegurar este sentido de elevação das regras de funcionamento de uma comunidade e quem será o guarda do guarda, que, em democracia, no limite será sempre o povo, mas sem que exista um sentido individual de maior exigência ética e cívica com os nossos comportamentos e com os comportamentos dos outros, em especial com os que têm responsabilidades públicas, haverá sempre uma tendência para indignações mais ou menos repentinas. Indignações que podem preencher as consciências, mas nunca constituirão padrão social. Em especial, quando resultam de protagonistas que, pelo poder, pela omissão ou através da ação, são totalmente contraditórios com os seus passados. Tudo parece mudar em função do tempo, das circunstâncias e dos protagonistas em causa. Quarenta e quatro anos de democracia já é tempo suficiente para alguma vergonha na cara.

E por falar em tempo, dois anos depois não será tempo de se saber publicamente a lista integral dos abonados do saco azul do BES, onde se incluíam políticos e jornalistas?

É que a persistência do desfasamento entre a ação, a avaliação e a eventual penalização ou absolvição, num quadro fortemente mediático e com entorses que se estendem à justiça, gera um contexto em que a própria República se coloca numa situação sem ética ao permitir reiteradas violações da legalidade. Se o Estado não cumpre e não faz cumprir, porque haverão os cidadãos de cumprir? Só se tiverem um apurado sentido ético e cívico decorrente da sua educação. É essa uma pré-condição para uma sociedade mais justa e uma legalidade eficaz.

Sem repentes de ocasião, a ética da República tem de ser muito mais que a lei e esta tem de ser cumprida com eficácia. Só assim se erradicará a impunidade que se projeta de outros tempos e a que continua a persistir. Cidadãos exigentes nunca poderão aceitar, sem escrutínio, o que ouvem, veem e leem. Afinal, este é o tempo de profusa informação e desinformação, que exige uma capacidade de triagem fundamental quando a verdade tarda demasiadas vezes a chegar.

Enquanto assim não for, continuaremos a ter partidos que dizem o contrário do que fizeram, que fazem menos do que dizem e que não hesitam em contradizer-se ou modelar as narrativas políticas em função dos interlocutores, dos visados ou dos eleitores a atingir.

Quarenta e quatro anos depois, é uma República poucochinha.

NOTAS FINAIS

TROVOADA DE MAIO DEPRESSA PASSA A voragem de greves e manifestações previstas tem sobretudo um fundamento laboral, mas a sustentabilidade de muitos serviços ainda consegue ser mais crítica. Que o digam os serviços com orçamentos cativados, os fornecedores com faturas devolvidas de materiais já entregues ou as obras já realizadas que não puderam ser faturadas. Alguém acha que isto será forma de vida e de contribuir para que a economia funcione?

MAIO MADURO MAIO Entre passos pré- -negociação orçamental e uma frente de intervencionismo político-legislativo em rota para as legislativas, será aconselhável algum senso e sentido de sustentabilidade das opções.

 

Escreve à quinta-feira