Sobre Sócrates e a divulgação dos interrogatórios


O dano que causa extravasa as fronteiras dos direitos dos arguidos. Transcende-se aos direitos das suas famílias, induz e incita ao julgamento popular, à humilhação e ao enfraquecimento do princípio do contraditório e da igualdade de armas, pedras basilares, de resto, do processo penal


Começo este artigo com um ponto prévio. Tenho convicção, como cidadão e pelo que me é dado a conhecer dos processos judiciais que o envolvem, de que o eng.º José Sócrates não está isento de responsabilidade penal independentemente do Princípio Constitucional da Presunção da Inocência que o assiste e que prevalecerá até trânsito em julgado de eventual sentença condenatória.  Assim o que escreverei seguidamente não pode ser encarado como um ataque à sua personalidade nem tão pouco uma defesa da sua atuação como primeiro-ministro ou de um cidadão que se vê a braços com a justiça num dos mais violentos e complexos processos de que há memória. Trata-se de uma constatação factual e de um dos maiores dilemas que a justiça atravessa. A condenação popular como violação atípica de direitos, liberdades e garantias face à (i)mediatização da justiça.

A grande revisão do Processo Penal, em 2007, vem introduzir um novo paradigma à publicidade processual e ao segredo de justiça, em particular, atribuindo-lhe características mistas quanto à validade e ao alcance a atingir do segredo. Nele se encontram bem delimitadas duas dimensões. Uma de segredo interno que protege os diversos participantes processuais da prejudicialidade dos seus direitos e outro, de natureza externa, que impede o acesso ao conteúdo de determinado ato processual a todos aqueles que não têm o dever de o conhecer e, não menos importante no objetivo deste artigo, da sua divulgação independentemente dos objetivos que a possam presidir e nisto, com evidência, enquadra-se o grande “chapéu de chuva”, mas de dificílima concretização, a que se dá o nome de “interesse público”. E percebe-se que assim o seja, pois é no momento de confronto com o poder punitivo do Estado que os cidadãos encontram a sua maior fraqueza e que os seus direitos, liberdades e garantias mais se expõem, mais se fragilizam e, em caso do exercício efetivo desse poder punitivo, mais se limitam. 

Ora, como sabemos, a limitação de direitos fundamentais deve obedecer sempre a critérios de proporcionalidade, necessidade e adequação pelo que é a própria Constituição da República que serve de batuta jurídica e de sismógrafo da realidade processual penal atinente às mais diversas possibilidades de limitações de direitos dos cidadãos. Mas a reforma de 2007 preocupa-se igualmente com os meios de comunicação social e com sua relação com a justiça sobretudo no que ao confronto entre o imediatismo e a factualidade diz respeito ou, se quisermos, ao confronto entre a narração e a reprodução pública de determinado processo. 

Ora é dentro deste dilema que os mais diversos operadores de comunicação, máxime o direito fundamental da liberdade de imprensa, e os mais diversos órgãos judiciais e judiciários devem encontrar o equilíbrio para que o essencial conhecimento público não se sobreponha aos interesses legítimos dos arguidos, aos seus direitos e sobretudo à sua dignidade que, independentemente das personagens em causa, é condição máxima de salvaguarda de qualquer participante processual e é, igualmente, pilar essencial de todo o processo penal. 

A divulgação das imagens dos interrogatórios do eng.º Sócrates e de muitos outros participantes neste processo constitui não apenas uma subversão interpretativa daquilo que são os limites e as finalidades do segredo de justiça como, não estando a proteção de outro direito de maior prevalência em causa, constitui um ilícito penal inequívoco. Pois ele não apenas viola a lei, concorde-se com ela ou não, como viola direitos, liberdades e garantias irrenunciáveis pela Constituição. 

Pior, o dano que causa extravasa as fronteiras dos direitos dos arguidos. Transcende-se aos direitos das suas famílias, induz e incita ao julgamento popular, à humilhação e ao enfraquecimento do princípio do contraditório e da igualdade de armas, pedras basilares, de resto, do processo penal.  Concretizações absolutamente proibitivas de um Estado de Direito democrático e potenciadoras de um desequilíbrio da tranquilidade e paz social e, no limite, dos fundamentos do Estado de Direito.

Termino como comecei. Dificilmente a minha convicção mudará em relação à conduta do eng.º Sócrates como primeiro-ministro. Mas ele, como qualquer outro arguido em qualquer outro processo, tem o direito a um processo justo e equitativo. É assim que dita a nossa lei fundamental. Julgar não é, nem nunca pode ser, humilhar.


Sobre Sócrates e a divulgação dos interrogatórios


O dano que causa extravasa as fronteiras dos direitos dos arguidos. Transcende-se aos direitos das suas famílias, induz e incita ao julgamento popular, à humilhação e ao enfraquecimento do princípio do contraditório e da igualdade de armas, pedras basilares, de resto, do processo penal


Começo este artigo com um ponto prévio. Tenho convicção, como cidadão e pelo que me é dado a conhecer dos processos judiciais que o envolvem, de que o eng.º José Sócrates não está isento de responsabilidade penal independentemente do Princípio Constitucional da Presunção da Inocência que o assiste e que prevalecerá até trânsito em julgado de eventual sentença condenatória.  Assim o que escreverei seguidamente não pode ser encarado como um ataque à sua personalidade nem tão pouco uma defesa da sua atuação como primeiro-ministro ou de um cidadão que se vê a braços com a justiça num dos mais violentos e complexos processos de que há memória. Trata-se de uma constatação factual e de um dos maiores dilemas que a justiça atravessa. A condenação popular como violação atípica de direitos, liberdades e garantias face à (i)mediatização da justiça.

A grande revisão do Processo Penal, em 2007, vem introduzir um novo paradigma à publicidade processual e ao segredo de justiça, em particular, atribuindo-lhe características mistas quanto à validade e ao alcance a atingir do segredo. Nele se encontram bem delimitadas duas dimensões. Uma de segredo interno que protege os diversos participantes processuais da prejudicialidade dos seus direitos e outro, de natureza externa, que impede o acesso ao conteúdo de determinado ato processual a todos aqueles que não têm o dever de o conhecer e, não menos importante no objetivo deste artigo, da sua divulgação independentemente dos objetivos que a possam presidir e nisto, com evidência, enquadra-se o grande “chapéu de chuva”, mas de dificílima concretização, a que se dá o nome de “interesse público”. E percebe-se que assim o seja, pois é no momento de confronto com o poder punitivo do Estado que os cidadãos encontram a sua maior fraqueza e que os seus direitos, liberdades e garantias mais se expõem, mais se fragilizam e, em caso do exercício efetivo desse poder punitivo, mais se limitam. 

Ora, como sabemos, a limitação de direitos fundamentais deve obedecer sempre a critérios de proporcionalidade, necessidade e adequação pelo que é a própria Constituição da República que serve de batuta jurídica e de sismógrafo da realidade processual penal atinente às mais diversas possibilidades de limitações de direitos dos cidadãos. Mas a reforma de 2007 preocupa-se igualmente com os meios de comunicação social e com sua relação com a justiça sobretudo no que ao confronto entre o imediatismo e a factualidade diz respeito ou, se quisermos, ao confronto entre a narração e a reprodução pública de determinado processo. 

Ora é dentro deste dilema que os mais diversos operadores de comunicação, máxime o direito fundamental da liberdade de imprensa, e os mais diversos órgãos judiciais e judiciários devem encontrar o equilíbrio para que o essencial conhecimento público não se sobreponha aos interesses legítimos dos arguidos, aos seus direitos e sobretudo à sua dignidade que, independentemente das personagens em causa, é condição máxima de salvaguarda de qualquer participante processual e é, igualmente, pilar essencial de todo o processo penal. 

A divulgação das imagens dos interrogatórios do eng.º Sócrates e de muitos outros participantes neste processo constitui não apenas uma subversão interpretativa daquilo que são os limites e as finalidades do segredo de justiça como, não estando a proteção de outro direito de maior prevalência em causa, constitui um ilícito penal inequívoco. Pois ele não apenas viola a lei, concorde-se com ela ou não, como viola direitos, liberdades e garantias irrenunciáveis pela Constituição. 

Pior, o dano que causa extravasa as fronteiras dos direitos dos arguidos. Transcende-se aos direitos das suas famílias, induz e incita ao julgamento popular, à humilhação e ao enfraquecimento do princípio do contraditório e da igualdade de armas, pedras basilares, de resto, do processo penal.  Concretizações absolutamente proibitivas de um Estado de Direito democrático e potenciadoras de um desequilíbrio da tranquilidade e paz social e, no limite, dos fundamentos do Estado de Direito.

Termino como comecei. Dificilmente a minha convicção mudará em relação à conduta do eng.º Sócrates como primeiro-ministro. Mas ele, como qualquer outro arguido em qualquer outro processo, tem o direito a um processo justo e equitativo. É assim que dita a nossa lei fundamental. Julgar não é, nem nunca pode ser, humilhar.